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A automovelcracia – Por Eduardo Galeano
Sequestro dos fins pelos meios: o supermercado o compra, o televisor lhe assiste, o automóvel o dirige. Os gigantes que fabricam automóveis e combustíveis, negócios quase tão rentáveis quanto armas e drogas, convenceram-nos de que o motor é o único prolongamento possível do corpo humano.
Em nossas cidades, submetidas à ditadura do automóvel, a grande maioria das pessoas não tem outra alternativa a não ser pagar para viajar, como sardinhas em lata, num transporte público destrambelhado e insuficiente.
A sociedade de consumo, oitava maravilha do mundo, décima sinfonia de Beethoven, impõe-nos sua simbologia de poder e sua mitologia de ascensão social. “O carro é seu melhor amigo”, informa um anúncio. A vertigem sobre rodas o fará feliz: “Viva uma paixão!”, oferece outro anúncio. A publicidade o convida para entrar na classe dominante acessando a chavinha mágica que liga o motor: “Imponha-se!”, ordena a voz que dita as ordens do mercado, e também: “Demonstre que você tem personalidade!”. E, se não me falha a memória da infância, se você colocar um tigre no tanque, você será o mais rápido e o mais poderoso de todos, e passará por cima de quem atrapalhar o seu caminho em direção ao sucesso.
A linguagem fabrica a realidade ilusória que a publicidade precisa para vender seus produtos. Mas ocorre que, na realidade real, os instrumentos criados para multiplicar a liberdade contribuem para nos encarcerar. O carro, essa máquina de ganhar tempo, devora o tempo humano. Nascido para nos servir, coloca-nos a seu serviço: ele nos obriga a trabalhar mais e mais horas para poder alimentá-lo, rouba nosso espaço e envenena nosso ar.
Em nome da liberdade de empresa, da liberdade de circulação e da liberdade de consumo, o ar urbano tornou-se irrespirável. O carro não é o único culpado pela agressão cotidiana ao ar no mundo, mas é quem mais diretamente ataca os habitantes das cidades. As ferozes descargas de chumbo que se enfiam no sangue, agredindo os nervos, o fígado e os ossos, têm efeitos devastadores principalmente no hemisfério sul, onde não são obrigatórios os catalizadores nem a gasolina purificada. Conforme denunciam os ecologistas, em Santiago do Chile, cada criança que nasce aspira o equivalente a sete cigarros diários e uma em cada quatro crianças sofre de alguma forma de bronquite.
O que é a ecologia? Um táxi pintado de verde? Na Cidade do México, os táxis pintados de verde são chamados de táxis ecológicos e chamam-se de parques ecológicos as poucas árvores de cor doentia que sobrevivem ao assédio dos carros. Numa publicação oficial, as autoridades da capital mexicana difundiram alguns conselhos ecológicos que parecem ter sido inspirados pelos mais sombrios profetas do apocalipse. A Comissão Metropolitana de Prevenção e Controle da Contaminação Ambiental recomenda textualmente aos habitantes da cidade que “permaneçam o menor tempo possível ao ar livre, mantenham fechadas portas e janelas e não pratiquem exercícios das 10 às 16 horas” nos dias muito poluídos, que são quase todos.
Segundo relatam os estudiosos de antiguidades gregas. a cidade nasceu como um lugar de encontro das pessoas. Há espaço para as pessoas nestas imensas garagens? Pouco antes da publicação desses conselhos ecológicos, saí caminhando pelas ruas da Cidade do México. Andei quatro horas entre motores que rugiam. Sobrevivi. Meus amigos me deram boas-vindas emocionados, mas me recomendaram um bom psiquiatra.
Os automóveis matam uma multidão, a cada ano, no mundo inteiro. Em muitos países, as estatísticas são duvidosas, ou inexistentes ou não estão atualizadas. As últimas estimativas globais disponíveis (do Worldwatch Institute, de Washington) indicam que mais de 250 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito em 1985. Nem a guerra do Vietnã matou tanta gente em apenas um ano.
No mundo inteiro, o trânsito é a primeira causa de morte entre os jovens, acima de qualquer doença, droga ou crime. Uma enorme campanha internacional de propaganda, com nuances francamente terroristas, adverte diariamente aos jovens sobre os riscos do sexo em tempos de Aids. Por que não fazer uma campanha semelhante acerca dos perigos do automóvel? A carteira de motorista equivale à licença de porte de armas?
Andar de bicicleta pelas ruas das grandes cidades latino-americanas, que não têm ciclovias, é a forma mais prática de se suicidar. Nos países do sul do planeta, onde as normas existem para serem violadas, há muito menos carros do que nos países do norte, porém matam muito mais. Porque os latino-americanos que não têm nem terão carro próprio – a imensa maioria não pode nem poderá comprá-lo – continuam condenados a aguardar nas esquinas, sem outro remédio a não ser esperar os escassos ônibus? Por que não abrir, antes que se já tarde, ciclovias protegidas nas avenidas e ruas principais?
Os carros não votam, mas os políticos têm pânico de provocar-lhes o mínimo desgosto. Nenhum governo latino-americano atreveu-se a desafiar o poder motorizado. É verdade que recentemente Cuba se encheu de bicicletas, mas isso não aconteceu durante os trinta e tantos anos de revolução. A bicicleta aparece maciçamente em Cuba quando não há outro remédio, porque não sobra uma gota de petróleo: não como uma alegria desfrutável, mas como uma calamidade inevitável.
Nem sequer as revoluções, às quais ninguém poderia negar o desejo de mudança, propuseram-se a pôr em prática esta singela maneira de diminuir a dependência das onipotentes empresas que dominam o negócio do transporte e do petróleo no mundo. Não existe pior colonialismo do que aquele que nos conquista o coração e nos apaga a razão.
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Este texto foi digitalizado da extinta Revista Atenção, nº 4, Fev/1996 – Pág. 54 (revista impressa).
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A fotografia foi baixada do Portal Geledés.
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Leia também, do mesmo autor, os artigos A automovelcracia II: liturgia do divino motor e A automovelcracia III: o anjo exterminador.
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ARTIGO
REPENSAR E RESSIGNIFICAR A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO PARA O TRÂNSITO
RESUMO
O presente trabalho é apenas um dos resultados de uma pesquisa acadêmica, qualitativa, realizada em dois Institutos de Educação do Estado do RS, no ano de 2020, com aval do Centro Universitário Metodista – IPA, de Porto Alegre. Pesquisadores do curso de Reabilitação e Inclusão, deste Centro Acadêmico, obtiveram o título de Mestres defendendo diferentes dissertações. Algumas delas mais voltadas para a área da saúde e essa pesquisa adequou-se a este tema, principalmente, por levantar questões que envolvem educação e saúde. Os índices de acidentalidade e de óbitos no trânsito tem preocupado as autoridades públicas pelos assustadores números de vítimas não fatais que necessitam se recuperar e se afastar do mercado de trabalho por longos períodos. A prevenção inicia com uma educação que visa, sobretudo, fomentar conhecimentos que a escola deve levar para a sala de aula e que ensejam maior responsabilidade social. Assim, além de cumprir a Resolução da ONU, esta pesquisa acadêmica apontou que há muitos caminhos para que o número de vítimas fatais e não fatais no trânsito sejam minimizadas. A humanização do trânsito passa por estas questões antes de qualquer lei ou regras.
Palavras-chave: Humanização. Trânsito. Responsabilidade social.
Introdução
Todo o conhecimento a respeito desse tema necessita ser ressignificado. Essa educação, esse conhecimento, que a escola leva para os alunos é, em muitos casos, estereotipado, livresco, incongruente e na maioria dos casos um assunto não dialoga com outro assunto. Tem sentido, por exemplo, fazer as crianças apenas “teatralizarem” uma cena em que uns fazem papel de idosos na posição de pé, dentro de um ônibus, enquanto outros fazem o papel de pessoas jovens sentadas, sem dar a mínima para quem está de pé, se, essas mesmas crianças nunca foram apresentadas ou foram questionadas sobre o que consta lá no ESTATUTO DO IDOSO? Se eles nunca entenderam que um idoso tem limitações de toda ordem? Muitas crianças nem os próprios avós conhecem, ou conheceram, ou sequer tiveram
contato com algum idoso. Portanto, como vão entender que uma pessoa idosa tem que ser mais cuidada? Na cena abaixo o menino que faz o personagem de idoso até usa bengala. Poderia ser uma pessoa bem obesa, ao invés de alguém que precisa de bengala.
Ressignificar é mais do que isso que a cena, abaixo, mostra. É fazê-los entender, nas mais variadas faixas etárias, que há várias situações no trânsito ou por causa dele, que desumanizam. Isso sim tem que ser mais explorado.
Uma nova pedagogia ou uma nova metodologia?
Enquanto esses assuntos entrarem na sala de aula como algo estanque, sem um encadeamento ou continuação, sem conexão com outros assuntos, essa realidade que foi encenada e outras ideias iguais a esta, terão pouco resultado. Talvez na sequência disso que está implícito nesta imagem, alguém tenha pensado em outras questões como por exemplo a precariedade do serviço público “transporte coletivo” que é algo que também deve ser questionado quando levarem o assunto trânsito para a sala de aula, sempre adequando esse e outros assuntos à idade das crianças. Em alguns horários do dia os ônibus também transportam estudantes que adentram no coletivo com as mochilas nas costas e se o corredor do ônibus está cheio, eles vão empurrando quem encontram pela frente sem a mínima educação. No teatro, isso também poderia ter sido explorado. E a questão da acessibilidade? E o preço da passagem. É justo quando há pessoas, que pagam a mesma passagem dos que estão sentados, sendo transportadas de pé e em ônibus mal limpos? Seguidamente falam em retirar a gratuidade, a isenção da passagem para idosos. Isso é correto? Enfim, uma educação para o trânsito que de fato dê conta da realidade, seja do idoso, bem como como de qualquer pessoa que utilize o transporte coletivo ou da realidade do pedestre ou do ciclista e até mesmo do condutor de qualquer veículo e de tudo o que leva à desumanização.
O que não dá mais para admitir é que a escola se abstenha desses assuntos ou que fique agindo apenas como guardiões da lei de trânsito, unicamente.
Uma lei que a educação desconhece. A escola está literalmente perdida porque, além de outras coisas, não sabe nem se esse assunto é mais um tema transversal. Ou se será diluído nas diferentes áreas do conhecimento. Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) os assuntos aparecem diluídos. Na lei de trânsito mencionam que o assunto trânsito deve ser visto ou tratado numa perspectiva interdisciplinar e não é o que vemos na maioria das atividades propostas. Nessa que aqui neste texto foi citada, sobre um teatro com crianças, até houve uma tentativa de buscar a interdisciplinaridade, porém, como foi dito, a realidade é muito maior do que aquilo que estava sendo mostrado para as crianças.
Em que pese a responsabilidade social de quem leva esse assunto para a sala de aula, há de se buscar, sempre, um olhar mais abrangente sobretudo o que cerca este tema. Falar do idoso e também de acessibilidade é um assunto tanto da sociologia como da saúde. Falar do valor da passagem do ônibus é um assunto da matemática e da economia. Falar de certos conceitos, reforçar que temos que ser mais solidários uns com os outros, é um assunto do ensino religioso (se e quando esse componente curricular fizer parte da grade). Falar de cidadania é algo da filosofia e de outros componentes. E nem se falou em sinalização e regras, mesmo assim se está trabalhando a questão do trânsito de forma bem mais abrangente e principalmente trabalhando a humanização desse trânsito.
Ressignificar a epistemologia da educação para o trânsito a partir destas ideias e ao mesmo tempo passar a trabalhar esse tema não mais apenas numa lógica interdisciplinar, mas também transdisciplinar. Como ilustrado na Figura abaixo .
Figura 1 – Alunos de pré escola encenando teatro https://www.facebook.com/photo/?fbid=6287139251318908&set=gm.5847260775359629&idorvanity=415279358557825
O que está sendo retratado nesta cena (Figura) é apenas um assunto preparatório para assuntos que virão. EXEMPLO: nessa faixa etária uma criança NÃO abstraiu ainda, O SUFICIENTE, para entender e aplicar aqueles conceitos mais complexos.
Sobre um assunto ser preparatório para depois entrar um novo assunto, professores (experiências relatadas) já trabalharam dessa forma: com 8º ano foram tornadas conhecidas as esculturas que retratam e exaltam mãos. Isso mesmo, mãos e não são poucas. No 9º ano essa ideia é novamente retomada, ideia para relacionar com outro assunto: xenofobia. Os alunos tiveram que descobrir quem tinha feito a conhecida escultura da mão em Punta Del Este e para surpresa deles foi um chileno e não um uruguaio. Portanto, um estrangeiro. E no 1º ano do ensino médio também retomar o assunto xenofobia e preconceito solicitando que os alunos descubram, aqui no Brasil, alguma escultura AO AR LIVRE que retrate mãos NEGRAS como as que eles tinham visto no 8º ano. Esse entrelaçamento de assuntos em torno de um mesmo tema é o que pode levar os alunos a se interessarem por este(s) conhecimento(s), que, por sua vez, se conectarão a outros conhecimentos em “cadeia”. Isso é mais TRANS do que INTERDISCIPLINAR. Ou não? O mesmo aconteceria se, quando pensaram aquele teatro, fizessem o mesmo que foi dito aqui sobre o tema das mãos.
Nos anos posteriores do ensino fundamental a escola deve organizar estes mesmos assuntos, aqui mencionados, dando outros enfoques ou reafirmando ideias já antes trabalhadas. Costuma-se fazer isso, organizando SEQUÊNCIAS
DIDÁTICAS. Os alunos já assimilaram aqueles conhecimentos sobre aquelas questões específicas já apresentadas relacionadas ao trânsito e o enfoque pode ser outro: o início da industrialização no Brasil e a expansão da eletrificação, por exemplo. Dois assuntos que se encaixam, se complementam e que também remetem para um terceiro assunto que é o trânsito e “sua história”. Na BNCC há referência a isso, quando na habilidade EF07GE02, combinada com a habilidade EF07GE07, é dito que “apesar da modernização da rede de transportes, ainda há estradas não pavimentadas…”. Trazendo de volta aquele assunto trabalhado lá nos anos iniciais sobre a(s) dificuldade(s) dos idosos, ao buscarem o transporte coletivo para se locomover, imaginemos uma situação daquelas que foi encenada pelas crianças da educação infantil, numa estrada não pavimentada e num ônibus em mau estado de conservação ou até mesmo no metrô lotado. Na sequência analisar a obra de arte “Estrada de ferro Central do Brasil” da artista Tarsila do Amaral (1924), onde já aparecem imagens de automóveis, sinaleiras e postes, bem no início da industrialização da região sudeste. Seguir vendo uma representação cartográfica, habilidade EF08GE18, para analisar as redes e as dinâmicas urbanas e rurais. Em ciências, EF07CI05, discutir o uso de diferentes tipos de combustíveis e em ciências, ainda, EF09CI03, verificar quais os impactos causados pela queima de combustíveis fósseis para em seguida pesquisar, também, EF07CI13, e descrever o mecanismo natural do efeito estufa. Uma última ideia importante e que tem a ver com essas ideias anteriores é que a área de São Paulo até o Rio de Janeiro abriga 22% da população do país e por volta de 50% dos automóveis e da produção industrial. Seguir também falando em desumanização num “mundo em transformação” ou em um “mundo em destruição”?
Tudo isso tem conexão e quem irá fazê-la? Por óbvio que não são os alunos e sim quem está planejando os assuntos que devem entrar em sala de aula. Uma educação que de fato produza profundas sinergias entre as diferentes disciplinas e áreas do conhecimento.
Considerações Finais
Todas essas questões serviram para que as alunas do curso de magistério de dois Institutos de educação passassem a levar este assunto para a sua prática docente com mais qualidade. Mesmo que seja uma ideia embrionária, o resultado de tudo isto é que pela primeira vez, no país, aconteceu um Fórum Estudantil de Educação para o trânsito com a participação de alunas desses dois Institutos.
Na continuidade disso, organizou-se uma feira pedagógica que reuniu todas as ideias que surgiram tanto nos debates de sala de aula, nos dois Institutos, bem como no debate que ocorreu durante a realização do Fórum.
Ainda é muito incipiente essa experiência e espera-se que a partir dela, surjam outras experiências reunindo alunos(as) dos 109 Institutos de educação do RS e num futuro muito próximo sejam agregadas novas ideias para um novo Fórum de educação para o trânsito com a participação de acadêmicos da área da saúde e de outros acadêmicos ligados aos mais variados cursos que podem contribuir nestas discussões que envolvem a questão do trânsito. Acadêmicos da área da educação e gente que já atua na área técnica e que esteja atuando na educação para o trânsito também deverão participar desses próximos eventos.
REFERÊNCIAS
GAMA, Flávio A. da. Repensar e ressignificar a epistemologia da educação para o trânsito. 2020. Dissertação (Mestrado em Reabilitação e Inclusão) – Centro Universitário Metodista – IPA. Porto Alegre, 2020.