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Qual o custo do tempo perdido no trânsito?

Imagem: Nereu Jr/WRI Brasil.

Por Cristiano Scarpelli.

 

O chamado custo do tempo perdido no trânsito é, na verdade, um custo de oportunidade, o qual se relaciona com o tempo destinado a outras atividades das quais a pessoa abre mão para usar o modo de transporte.

 

Entre os diversos problemas do uso excessivo de carros nas grandes e médias cidades, sem dúvida os congestionamentos e o tempo perdido no trânsito são os que recebem maior atenção da mídia e da sociedade.

Os motoristas costumam não dar muita bola para outros problemas, ainda que gravíssimos, como as mortes e tragédias no trânsito, a poluição do ar, o estressante ruído produzido pelos veículos motorizados, o espraiamento urbano, que tornam as cidades disfuncionais, caras e distantes, ou os problemas hidrológicos causados pelo excesso de asfalto e concreto destinados aos automóveis. Geralmente, essas questões são ignoradas ou vistas como fatalidades, enquanto o trânsito infernal é visualmente evidente, sendo algo logo percebido como desagradável e a exigir soluções imediatas.

Não é por menos que diversas gerações de políticos foram eleitas prometendo solucionar os problemas de fluidez no trânsito através do alargamento de vias e da construção de viadutos. Até mesmo o pitoresco bordão do “rouba, mas faz” teve muita de sua popularidade atrelada a políticos que entregavam grandes obras viárias.

Avenidas mais largas, com túneis e viadutos retalhando a cidade, eram sinais da chegada do desenvolvimento e da modernidade, o que costumava render dividendos políticos e oportunidades de enriquecimento aos agentes envolvidos.

Nesse contexto, apresentar o tempo no trânsito como algo negativo, ou, em linguagem econômica, como uma desutilidade, fazia bastante sentido em termos políticos, econômicos e midiáticos. Em termos de PIB, a depender da metodologia aplicada, a literatura internacional indica que as possíveis perdas com essa externalidade nas grandes cidades tendem a variar de menos de 1% a 3% do PIB de cada localidade. No Brasil é possível encontrar estimativas ainda maiores:

a) Estudo de Guilherme Vianna, da Quanta Consultoria, levando em conta dados da Pnad de 10 regiões metropolitanas, estimou perdas econômicas de tempo no trânsito no valor de até R$ 267 Bilhões, ou 4% do PIB de 2012.

b) Pesquisa de Marcos Cintra, publicada pela Fundação Getúlio Vargas, com dados de 2012, da cidade de São Paulo, estimou um custo de congestionamento da ordem de R$ 40 Bilhões, o que corresponderia a 5,7% do PIB paulistano para aquele ano.

c) A federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) calculou perda de 4,4% do PIB para 37 regiões metropolitanas e de 2,3% para todo o Brasil em 2012, sendo que em algumas capitais, como RJ e SP, as perdas chegariam perto de 6% do PIB.d).

d) Estudo publicado na revista de economia contemporânea calculou uma perda de 2,6% do PIB para o ano de 2010 em todo o Brasil. Caso as capitais conseguissem reduzir o tempo de deslocamento, equiparando-o ao das cidades do interior, haveria um ganho de 0,8% do PIB e uma redução da perda para 1,8%.

Mas, afinal, qual o nível de conhecimento que se tem sobre essas projeções? Para responder a essa questão, é importante esclarecer o que se pretende mensurar. O chamado custo do tempo perdido no trânsito é, na verdade, um custo de oportunidade, o qual se relaciona com o tempo destinado a outras atividades das quais a pessoa abre mão para usar o modo de transporte.

No caso em questão, quem precisa se deslocar estaria deixando de trabalhar, descansar ou fazer algo mais aprazível. Em qualquer dos casos ocorre uma perda do tempo destinado ao trabalho ou ao lazer, sobre o qual os economistas atribuem um valor baseado na taxa salarial, já que lazer e trabalho seriam intercambiáveis.

Portanto, é um custo diferente de outros usualmente mencionados e sujeito a mais imprecisões e especulações, pois os desembolsos com infraestrutura viária, acidentes, ou tratamento de saúde efetivamente ocorrem, enquanto o custo de oportunidade diz respeito a algo que potencialmente poderia ocorrer, mas que não se realiza porque a pessoa ficou presa no trânsito.

Para se projetarem valores, uma opção metodológica é estimar o valor do tempo de viagem (Value of Travel Time), onde se verifica quanto as pessoas estão dispostas a pagar para diminuir o seu tempo no trânsito (Value of Travel Time Saving). Fatores como o motivo (lazer, a trabalho ou para o trabalho) e o conforto do deslocamento realizado, bem como a satisfação com o tempo de trabalho e de deslocamento afetam as projeções, as quais podem ser até maiores do que a taxa salarial.

Outra possibilidade metodológica é tentar estimar o nível de produção sacrificada devido ao suposto tempo perdido no trânsito. A diferença em relação ao método anterior é que aquele atribui valores também ao tempo destinado ao lazer, enquanto o método da produção sacrificada busca encontrar os valores que deixaram de ser convertidos em renda através de alguma atividade economicamente produtiva.

O estudo de Guilherme Vianna seguiu a metodologia do valor do tempo de viagem e considerou 100% do tempo gasto em deslocamentos como custo, atribuindo a esse tempo o valor médio da hora de trabalho da população economicamente ativa. Por este enfoque, as perdas projetadas tendem a ser maiores (no caso, encontraram-se 4% do PIB) e somente aqueles que estivessem em teletrabalho não seriam prejudicados.

 

Pontes Colombo Salles e Pedro Ivo Campos, Florianópolis. (Imagem: Cristiano Estrela/Governo de Santa Catarina)

 

Muitos autores criticam o irrealismo deste cálculo e, por isso, outras metodologias tentam estabelecer parâmetros mais aceitáveis, ainda que continuem longe de algum consenso. Uma primeira possibilidade seria definir um tempo diário tolerável no trânsito e contabilizar somente o tempo excessivo como desperdício.

Por exemplo, o estudo que comparou o trânsito das capitais com o do interior usou como parâmetro de aceitabilidade o tempo de deslocamento médio de cidades do interior, o que resultou numa estimativa de perda menor (1,8% do PIB). Outra alternativa metodológica é tentar calcular o custo do congestionamento, sob uma perspectiva da engenharia.

Para se chegar aos resultados, primeiro é definida a capacidade da via em comportar determinada quantidade de veículos, de forma que, acima do patamar escolhido, tenta-se estimar o número de pessoas que ficam retidas no tráfego e por quanto tempo. Esta foi a opção metodológica utilizada pela pesquisa de Marcos Cintra, a qual também contabilizou outros custos advindos do congestionamento, como maior emissão de poluentes, maior gasto com combustível e perdas no transporte de mercadorias.

A metodologia com enfoque na engenharia também é a utilizada pelos sites TOMTOM e INRIX, os quais, através dos dados de movimentação dos usuários dos seus aplicativos, fazem projeções do tempo perdido no trânsito em diversas cidades do mundo.

As projeções por essa perspectiva tendem a ser menores do que as mensuradas pelo método do valor do tempo de viagem e da produção sacrificada. Ainda assim, a definição dos parâmetros de qual seria o fluxo de trânsito aceitável para uma via continua sujeita a uma boa dose de subjetividade e variabilidade.

Após se definirem os parâmetros aceitáveis de cada metodologia e, por conseguinte, qual seria o tempo demasiado que se passa no trânsito, o passo seguinte é estimar os valores da taxa salarial para serem multiplicados pelo tempo considerado excessivo. O ideal seria verificar a produtividade marginal do tempo extra, bem como levar em conta as diferenças de renda por idade, gênero e pelo modo de transporte utilizado, mas, para facilitar, muitos estudos tendem a trabalhar com o rendimento médio de cada localidade pesquisada.

No caso do método do valor do tempo de viagem é comum ainda realizar ajustes para a taxa salarial, conforme o nível de satisfação que as pessoas possuem com o próprio trabalho e com o deslocamento. Se o nível de satisfação com o tempo de trabalho for maior do que com o tempo de deslocamento, considera-se que a disposição a pagar para se diminuir o tempo de viagem pode ser até maior do que a taxa salarial, ocorrendo o inverso se o nível de satisfação com o deslocamento for maior. Ou seja, bons empregos, mas com deslocamentos muito desconfortáveis, podem resultar em elevada disposição a pagar para diminuir o tempo de viagem.

No caso do método da produção sacrificada há que se observar ainda quanto desse tempo excessivo poderia ser efetivamente recuperado em termos de atividade econômica produtiva. Se alguém usar eventual economia de tempo no trânsito para descansar, passear ou passar mais tempo com os filhos, possivelmente terá uma melhora na sua qualidade de vida e no seu bem-estar, mas, em termos de PIB, não terá ocorrido nenhum acréscimo.

Somente se as pessoas utilizarem o tempo economizado no trânsito para trabalhar mais é que se tem um incremento na atividade econômica como usualmente mensurada. A literatura internacional recomenda que apenas algo em torno de 25% a 33% deste tempo é que seria recuperado em atividades economicamente produtivas.

Assim, neste vasto universo de possibilidades metodológicas, é natural que os valores estimados variem enormemente. A título de exemplo, se uma pessoa leva 90 minutos no seu deslocamento diário (considerando ida e volta), algumas metodologias consideram 100% dos 90 minutos como tempo perdido, enquanto outras contabilizam somente 25% dos 30 minutos considerados excessivos (os outros 60 minutos podem ser considerados inevitáveis ou até desejáveis conforme a hipótese de Marchetti).

 

Marginal Pinheiros, São Paulo. (Imagem: Mariana Gil/WRI Brasil).

De forma que, no primeiro caso, tem-se 90 minutos de produção sacrificada e no segundo somente 7,5 minutos, o que dá uma diferença espantosa de 12 vezes entre as duas escolhas metodológicas.

Em termos de PIB, também é possível ilustrar essas diferenças com um cálculo simples. Conforme o Censo de 2010, 65% felizardos da população economicamente ativa gastavam menos de uma hora indo e voltando ao trabalho. Por outro lado, 23% passavam entre uma hora e duas horas do seu tempo diário no trânsito e 12% de infelizes tinham que aguentar mais de duas horas para ir e voltar de suas atividades.

Neste cenário, caso a população economicamente ativa diminuísse seu tempo de deslocamento para a recomendável ou inevitável 1 hora diária da constante de Marchetti e, considerando que trabalhassem 1/3 a mais em cima desse ganho de tempo, o resultado seria um acréscimo em torno de R$ 22 Bilhões, ou apenas 0,3% do PIB de 2019, percentual este quase 30 vezes menor do que o verificado em outros estudos.

Portanto, o engenheiro Eduardo Alcântara de Vasconcellos, presidente da comissão técnica de meio ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), apresenta críticas bem fundamentadas a alguns dos estudos aqui citados e conclui que “esta tentativa de obter estimativas de alto valor tem o objetivo de dar sustentação política e econômica à aprovação de altos investimentos (como o investimento no sistema viário para automóveis) e alcançam seu intento, na medida em que os supostos custos elevados encontram grande receptividade na mídia.”

Por conta disso, o autor propõe focar em questões mais estratégicas, como os subsídios diretos e indiretos dados ao uso do automóvel e a precariedade existente para se pedalar, caminhar e usar o transporte público nas cidades, atividades estas que deveriam receber maiores investimentos.

 

Cristiano Scarpelli é ciclista, criador do canal Ciclo Rota BH e membro do Conselho Consultivo do Observatório da Bicicleta.

 

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Artigo de Opinião enviado pelo autor para o Observatório da Bicicleta, publicado originalmente em Caos Planejado.

 

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