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Porque falar de gênero e bicicleta? Do Brasil ao Fórum Mundial da Bicicleta no Equador
Não é possível pesquisar mobilidade urbana sem considerar que antes de uma pesquisa propriamente dita, já debatemos nossos deslocamento na prática do dia-a-dia. Quem nunca reclamou o tempo de espera do transporte público, ou já deixou de fazer algum trajeto por conta da condição de uma calçada ou rua? Quando comecei a pesquisar sobre bicicletas, me dei conta que para além da minha experiência como cicloativista, a vivência no transito e da mobilidade no geral são temas que fazem parte da socialização de cada indivíduo, influenciando suas visões e vivências na cidade.
Esse não é um tema clássico de investigação nas ciências humanas, pois possui uma história de referencias dentre as áreas de engenharia de transporte, geografia, arquitetura e urbanismo, mas que possuem tantas outras abordagens possíveis e interseccionaveis sobre as pessoas que utilizam os transportes e vias planejadas e que as modificam na prática percepções de mobilidade.
Quem nunca ouviu na sua cidade que criar uma ciclovia não teria uso e depois ela vira sucesso? Ou quando os pedestres encurtam caminhos planejados por urbanistas, pois faz mais sentido, criando novas rotas na cidade? Mas se as vezes é difícil prever, como planejar? Nesse processo a participação popular é bem importante, tanto quanto a existência de pesquisas que tracem o perfil dos usuários, e dados que investiguem além dos números: busquem conhecer as pessoas e admitir a importância de um a variável muito importante: a diversidade.
Falando de bicicleta, a diversidade também está presente nos diferentes usos como para saúde, esporte, mobilidade, trabalho, lazer, compras, etc., assim como também nos diferentes modelos de bicicleta no mercado: urbana, speed, fixa, elétrica, cargueira, triciclo,etc. Então porque não pensar na diversidade aplicada às pessoas vivem em diferentes partes da cidade, que acessam diferentes trabalhos, instituições de educação, lazer, cultura, e que são marcados por suas diferenças de classe, etnia, raça e também gênero nas opções de modais de mobilidade que podem agenciar na cidade.
Levando essas reflexões rumo ao Fórum Mundial da Bicicleta (FMB8), que aconteceu esse ano no Equador, pensava sobre como representar a discussão de gênero no Brasil e ainda os pontos de conexão com a realidade de Quito e com os demais países participantes. No atual contexto brasileiro falar de gênero parece necessitar de tantas justificativas quanto a ideia da diversidade que muitas vezes envolve muito mais um debate sobre a importância da empatia para outras vivências, pois é impossível experenciar as variáveis de gênero, raça e classe na totalidade, mas muito é possível aprender a partir do diálogo com mulheres sobre percepção de horário para retornar para casa, assédio no transito, ou ainda a precarização do transporte público para moradores da periferia, violência urbana e visibilidade de pessoas lgbtq+, ou ainda as péssimas condições de trabalho em aplicativos de entrega que envolvem em maioria jovens negros.
A primeira vez que eu vi uma bandeira totalmente colorida no Equador, com a presença das cores do arco-íris, me impactou sobre seu significado: A bandeira Whipala é formada por 49 quadrados coloridos, e é considerada o símbolo de resistência e da diversidade dos povos nativos de norte a sul da Cordilheira dos Andes. Assim como a Whipala, bandeira da Confederação Inca que guia a conduta e moral do povo andino.
As sete cores do arco-íris possuem significado: vermelho representa a terra; laranja, a sociedade e a cultura; amarelo é a energia, força e expressão dos princípios morais; branco é o tempo e o desenvolvimento; verde é a economia e as riquezas naturais andinas; azul é o espaço cósmico, os sistemas estelares e os fenômenos naturais e violeta é a política e a ideologia andina, expressa pelo poder comunitário. A diversidade é aqui representada a partir da participação popular e da exaltação da cultura nativa andina, a qual foi também homenageada durante a cerimônia de abertura do FMB8, através de um processo ritual de agradecimento à Pachamama (Mãe Terra). A Mãe Terra é a deidade máxima dos Andes, relacionada à terra, fertilidade, maternidade e principalmente aquela que representa uma grandiosa divindade feminina.
Pensar na figura feminina como protagonista de atividades foi um tema que discorreu durante todo o evento, inclusive durante a mesa de abertura do evento, aconteceu um protesto liderado pelas mulheres presentes na pré-atividade do evento ocorrido nos dias anteriores do FMB8, o Fórum Latinoamericano de Mulheres convocou a todas para participar do , “I Encuentro Interseccional de Mujeres y Disidencias del FMB”, que contou com diversas dinâmicas de acolhimento de mulheres para mulheres através da experiência e colaboração de lugares diferentes da América latina. Em muitas das atividades era estimulada a participação das presentes a fim de compartilhar as experiências vividas pelas mulheres latinoamericanas presentes, incentivando o protagonismo feminino construído em coletivo como forma de agregar as diferentes realidades e origens das mulheres presentes.
Figuras 5 à 8 da direita para esquerda: Reunião pré-FMB da Rede de Mulheres Latinoamericanas; quadro de propostas sobre Interseccionalidades; Materiais à venda; roda de atividades compartilhadas
Por conta de denúncias de assédio durante a construção do evento, a organização do FMB determinou a exclusão dos acusados como forma de garantir a segurança das participantes, de modo que as mulheres presentes se organizaram para conversar sobre o tema e fortalecer a própria rede, realizando uma manifestação durante o evento contra o assédio sofrido pelas mulheres nos espaços públicos e privados, além de refletir sobre o enfrentamento no próprio meio cicloativista.
Ainda durante o FMB8 aconteceu uma reunião das mulheres presentes no evento de forma a refletir sobre a participação das mulheres no evento e na intenção de construir um manifesto sobre a participação das mulheres na construção do Fórum através da criação de uma Comissão Permanente: “Comisión de mujeres y disidencias”. A primeira assembleia reivindica o debate de temas sobre acesso a espaços seguros, sobre inclusão, interseccionalidade e sobre a violência de gênero a fim de alcançar uma equidade de gênero durante o evento. O documento completo pode ser acessado aqui.
Esse documento foi lido durante a assembleia aberta de encerramento do evento, propondo a garantia da execução de um evento acolhedor para a participação das mulheres, garantindo espaços na programação para o encontro das participantes de forma a não concorrer com demais atividades do fórum.
Mas porque criar um espaço apenas de mulheres?
Acontece que a maior parte da participação no ativismo ou no uso da bicicleta ainda é de homens, e é necessário um espaço de dialogo sobre não apenas porque as mulheres pedalam/participam menos apesar dos censos populacionais indicarem a maioria populacional feminina, mas é necessário também conversar entre mulheres quais sãos os motivos daquelas que ali participam de permanecerem na bike e no ativismo. São esses espaços de troca que permitem construir dados sobre gênero e pensar em como o ambiente da bicicleta ser acolhedor para a participação feminina.
Em 2015 foi realizada a Pesquisa do Perfil do Ciclista Brasileiro[1]que buscava integrar a coleta de dados de diversas cidades do Brasil para entender o perfil das pessoas que utilizam a bicicleta nas suas respectivas cidades, analisando desde a frequência de uso da bicicleta na semana, faixa etária, renda, motivações e desafios. Um dado que chamava a atenção era o percentual médio total de mulheres que pedalavam em 10 cidades brasileiras de diferentes regiões contatava que apenas 7% de mulheres dentre o total de 502 entrevistas. Em 2017 a pesquisa do perfil foi refeita e apesar de não constar no detalhamento do relatório o debate de gênero, o número cresceu, mas ainda permaneceu em minoria quando comparado ao gênero masculino.
Aprendi bastante ouvindo relatos de outras participantes sobre suas realidades nos diferentes países representados na assembleia de mulheres, e a realidade da América Latina possui diversos pontos de contato, principalmente sobre a relação entre a sensação de liberdade a conquistas feministas sobre o corpo e o deslocamento graças a bicicleta. Por isso, a bike é uma ferramenta antiga de libertação da mulher que retorna a a partir dos novos movimentos sociais como um dos caminho na luta feminista por direitos, como o de ir e vir a noite sozinha, de superar ideias de fragilidade no transito, ou de sensação de conquista do própria espaço no deslocamento na rua. Esses foram relatos tão potentes durante o FMB8 quanto ouço durante pesquisas no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil.
O Grupo de Trabalho de Gênero da UCB possui uma biblioteca bibliográfica com pesquisas e documentos sobre a investigação dessa relação entre gênero e mobilidade, assim como a participação em eventos e fóruns de bicicleta são de grande importância para a troca de informações entre as participantes, que invadem outras temáticas relacionadas à bicicleta como etnia, raça, causa lgbtq+, pessoas com mobilidade reduzida, periferias, etc, como o BICICULTURA 2019, o Encontro Nacional para trazer a experiência do FMB8 como um espaço de troca com a realidade tupiniquim. E ai, qual a sua realidade sobre o debate de gênero no universo da bicicleta?
Muito obrigada a todas as mulheres desse continente maravilhoso que contribuíram com os debates que resultaram nesse texto. Seguimos juntas. Ni uma a menos.
[1] TRANSPORTE ATIVO (2015). Perfil do Ciclista Brasileiro. Parceria Nacional Pela Mobilidade por Bicicleta (Livreto).
Texto: Vivian Garelli – Antropologa, pesquisadora e cicloativista. Bike Anja e Coordenadora do GT Gênero da UCB.
Este texto foi composto para o Edital 01/2019 “Você no FM8” promovido pela UCB – União de Ciclistas do Brasil e financiado pelo Itaú como resultado da participação do/a autor/a no 8º Fórum Mundial da Bicicleta (Quito/Equador – 25 e 28/04/2019).
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Ver notícia original publicada no sítio da UCB – União de Ciclistas do Brasil.