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Nem lá nem cá

Por J. Pedro Corrêa.

O autor analisa e comenta a adoção do conceito de “sinistro de trânsito” pela sociedade

 

Desde o começo de 2021 está em vigor uma norma técnica que substituiu a denominação “acidente de trânsito” por “sinistro de trânsito”, aprovada pela Comissão de Estudo de Pesquisa de Transportes e Tráfego(CB-016), do Comitê Brasileiro de Transportes e Tráfego da ABNT, Associação Brasileira de Normas Técnicas. Esta alteração era demanda antiga da comunidade da segurança no trânsito que gostaria que os brasileiros compreendessem que o que acontece no nosso trânsito não são “acidentes” mas eventos previsíveis e, por isso, evitáveis. O assunto ficou “perdido” na agenda por longo tempo sem que ninguém tomasse a iniciativa de colocá-lo em discussão.

Em meados de 2020, o Comitê da ABNT deu vida ao tema realizando a 1ª consulta nacional sobre a alteração do nome; a 2ª e última consulta nacional foi divulgada no final do ano e aprovada pouco antes do natal de 2020. A NBR 10697:2020 cancela e substitui a de 2018, justamente a que tratava do acidente de trânsito. Após estudos e pesquisas, o Comitê aprova a nova denominação sinistro de trânsito.

Mais de um ano depois da mudança, decidi checar como está o uso da expressão sinistro de trânsito pelo país afora. Não me interessava saber se o termo era correto ou não; queria saber se o termo havia “colado”. Do meu arquivo de endereços de mais de 1000 nomes ligados ao trânsito, de todos os estados, selecionei 10% buscando gente de atividades variadas, títulos diversos, experiências diferenciadas, etc. Perguntei a estes companheiros de trânsito que avaliação faziam da mudança do acidente pelo sinistro.

A resposta, clara, NÃO PEGOU não me surpreendeu. Contudo, fiquei surpreso ao saber que teve gente que disse desconhecer a mudança; outros, ignorando a função da ABNT, criticaram a instituição pela forma como agiu. Parte dos respondentes enviou longas respostas sobre a oportunidade da medida, outros elaboraram sobre o significado da mudança e muitos opinaram de que “vai demorar um longo tempo até termos implantada uma mudança desta ordem”. Valeram como temas para reflexões.

Importante lembrar que a ABNT não é órgão do governo, é uma entidade privada, sem fins lucrativos, que cuida de diferentes tipos de normatizações no país, ou seja, estuda e propõe formas de sistematizar processos, sejam eles de cunho acadêmico, tecnológico, industrial, produção de serviços, entre outros. Entidade de utilidade pública, fundada em 1940, afiliada à Organização Internacional de Normalização (ISO) que atua em mais de 140 países, as deliberações da ABNT não têm força de lei no Brasil, apenas normatizam processos em inúmeras áreas.

Pelas respostas que recebi, ficou bem claro que, dentro do universo da segurança no trânsito, o termo sinistro teve aceitação, mas não unânime já que boa parte das pessoas não vê nele a descrição mais correta para o que chamávamos de acidente. Outros criticaram a escolha por não terem tido oportunidade de opinar, desconhecendo o fato de que a ABNT promoveu duas consultas públicas mas que, pela amplitude de divulgação da instituição, não chegaram a alcançar grande parte da comunidade do trânsito.

De qualquer forma, sinistro ficou melhor que acidente – quanto a isto, parece não haver dúvidas. A grande pergunta, neste momento é: E agora? Como avançar este processo? Está difícil!

A ABNT não tem estrutura para promover grande divulgação para chegar a toda a sociedade brasileira, aliás, nem é sua função. O Governo tomou conhecimento da decisão da ABNT mas não fez quaisquer esforços no sentido de disseminá-la. Como exemplo, cito a Senatran que, ao proclamar o Pnatrans, reconhece a importância da mudança mas explica que não a usará neste documento por questões legais.

Temos, então, uma situação curiosa: ainda que sem uma coordenação necessária, o processo de mudança foi iniciado mas será necessário muito esforço para que possa atingir um bom resultado. É como se tivéssemos nos jogado na água para atravessar o rio e, de repente, percebêssemos que a outra margem está muito distante mas agora já não dá mais para voltar. O que precisamos, então, é juntar forças para a travessia mas principalmente formular uma estratégia de como chegar à outra margem.

Muitos dos que responderam disseram que, por ser um processo demorado, não esperavam grandes avanços imediatos mas, aparentemente poucos demonstraram compreender o tamanho do desafio que está sendo enfrentado. Se fosse para cobrir apenas a área do trânsito, já seria desafio enorme mas é preciso entender que a adoção do termo sinistro de trânsito afeta inúmeras outras áreas de atividades.

Acidentes de trânsito, por exemplo, têm implicações no campo da medicina, na área social, na justiça, na economia, na educação, enfim, em quase todos os setores de atividades e o termo sinistro precisaria ser assumido em todos eles. Assim, para poder dizer que o sinistro está, nacionalmente aceito, será preciso um trabalho gigante que, neste momento, não consigo ver quem se habilitaria a coordenar.

Isto não significa, contudo, que devamos desistir, agora que o jogo começou. Para todo problema complexo existirá solução adequada e isto também se aplica a este tema. O ponto inicial do processo de enfrentamento é uma liderança clara e determinada. No caso do trânsito, ela teria de vir da Senatran, que é o órgão máximo do Sistema Nacional de Trânsito mas talvez pudesse ser assumida por um órgão superior do Governo como a Casa Civil da Presidência da República, que teria condições e autoridade para coordenar um amplo esforço nacional.

O que parece certo até agora é que já conhecemos a solução. O que precisamos definir, com clareza, é a extensão do problema e como resolvê-lo!

 

J. Pedro Corrêa é Consultor em programas de segurança no trânsito (jpedro@jpccommunication.com.br)

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Artigo publicado sob autorização do autor.

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