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Caminhos do cooperativismo em um mundo digital

Por Aline Os.

No momento exato em que você lê este texto, em diversas cidades espalhadas pelo mundo, milhares de ciclistas trabalham conectados à aplicativos de entregas e transitam encarando os vários riscos inerentes ao trânsito e ao preconceito decorrente da profissão exercida, muitas vezes atreladas a questões de raça e gênero.

Em São Paulo, entregadoras e entregadores se deslocam sem receber pagamento, quando saem de suas casas nas regiões periféricas, até chegarem nas áreas nobres das cidades, onde disputam por entregas. Inseridos na base de um sistema de “gamificação” do aplicativo, caso a disputa seja grande, eles seguem se deslocando, ainda sem receber, até encontrar áreas com mais demanda de entregas e menos concorrência. Quanto mais distante de casa, maiores os riscos, maiores os gastos, menores os ganhos, maior a precarização imposta pelo sistema criado por empresas que dominam a tecnologia e o mercado.

Segundo a pesquisa da Aliança Bike, uma organização brasileira do setor de mobilidade, ciclo entregadores pedalam, em média, 30 km não remunerados diariamente. O levantamento é de 2019, o mais recente com esse nível de detalhes sobre o tema. Sabemos que estas distâncias podem ter aumentado durante a pandemia do novo Corona Vírus, conforme mais pessoas aderiram ao trabalho por plataformas capitalistas, que possuem sistema de bloqueios e regras nem sempre claras, e estão diretamente relacionadas ao trabalho precarizado.

A regulamentação do trabalho por plataformas está em curso no Brasil, em um Grupo de Trabalho que reúne representantes do poder público, do setor empresarial e dos trabalhadores, mas a representatividade da bicicleta e de gêneros diversos segue pequena, com apenas 3 representante na mesa.

Para além desses dados, ciclo-entregadores também se sujeitam a trabalhar mal alimentados, sem vínculo empregatício reconhecido e sem direitos trabalhistas, debaixo de sol e chuva, com a bicicleta nem sempre preparada para jornadas diárias de até 12 horas (Aliança Bike, 2019). Esta é a gig economy, ou economia do bico, e ela afeta negativamente quem recorre à bicicleta como veículo para trabalhar.

 

TRABALHO DECENTE AO REDOR DO MUNDO

Diante destes dados, observa-se que o sul global detém as piores condições de trabalho por plataformas. Mas os países do norte global também seguem enfrentando a precarização de trabalhadores e minorias silenciadas, que se sustentam trabalhando de bicicleta.

Foi observando este cenário que, em 2019, surgiu o projeto FairWork, organizado pelo Oxford Internet Institute e WZB Berlin Social Science Center, que avaliam anualmente plataformas de trabalho em mais de 40 países, incluindo o Brasil. O projeto FairWork nasceu do esforço conjunto de pesquisadores de vários países, estabelecendo diretrizes e apontando caminhos possíveis para o trabalho decente. 

Ainda sobre a possibilidade de se estabelecer alternativas às plataformas capitalistas, em 2017, na Europa, grupos de trabalhadores começaram a criar cooperativas de ciclo entregas. Concomitantemente surgiu a Coopcycle, uma Federação de cooperativas de ciclo entregas, que reúne ciclistas entregadores e programadores que desenvolveram a primeira plataforma cooperativista de entregas, propondo condições justas de remuneração e trabalho. Este projeto inspirou um coletivo de ciclo entregas de São Paulo, o Señoritas Courier, a criar algo semelhante no Brasil, que está sendo pensado dentro da realidade do trabalho e da tecnologia no país.

Sim, o trabalho decente é possível, como também é possível criar plataformas geridas por entregadores!

 

O CUIDADO VEM ANTES DA PROGRAMAÇÃO

O coletivo Señoritas Courier nasceu em 2017, composto por mulheres cis e pessoas trans, com modelo de gestão horizontal, tendo o cicloativismo como base de suas ações. Em 2020, durante a pandemia, o coletivo passou a se entender como signatário do cooperativismo solidário e tem se empenhado no sentido de criar a própria cooperativa de entregas. Desde seu surgimento muita coisa avançou, e o coletivo está envolto em debates sobre interseccionalidade, inclusão digital e cooperativismo de plataformas.

Motivada por estas questões, estive em maio de 2023 na Alemanha, debatendo no painel “Gender equality: Closing the gap” (“Igualdade de gênero: preenchendo lacunas”, em tradução livre) durante a conferência Velo-city. O painel também contou com a presença da ciclo-entregadora Alix Meuwly (Urbike – Bélgica), das pesquisadoras Camila Rodriguez (Bycs – Holanda), Magali Bebronne (Vélo Quebec – Canadá), e do cicloativista Ricardo Ferreira (Mubi – Portugal).

A experiência possibilitou entender o que nos aproxima e nos afasta da forma de organização dos países que investem sistematicamente em barrar a precarização do trabalho e incentivam o uso da bicicleta. Assim acompanhei mesas sobre ciclologística, mercado de bicicletas cargueiras, elaboração de políticas públicas para incentivos na área, com olhar quase sempre voltado para a economia de mercado, mas que incluem a economia solidária e o cooperativismo, como a facilitação de aquisição de equipamentos modernos e apropriados por estas iniciativas.

Um exemplo de apoio do governo é visto nas ruas da pequena cidade de Leipzig (Alemanha), onde o EuroFound – uma organização da União Europeia para melhoria de condições de vida e trabalho – apoia a iniciativa Fulmo Kurierunion, integrante da Coopcycle, e exemplo de cooperativa de ciclo-entregas que gera trabalho decente, além de desenvolver um projeto de compartilhamento de cargueiras, contribuindo para que poucas plataformas capitalistas atuem na cidade.

Cooperativas como Urbike e Rayon9 (Bélgica), Les Mercedes e Mensakas (Espanha), Cargonautes (França), Wings (Inglaterra), entre outras, são fortes aliadas no combate ao trabalho precarizado, atuando junto aos governos e pesquisadores locais, debatendo o funcionamento do mercado, impulsionando setores como o de fabricação de bicicletas cargueiras elétricas, quantificando o impacto destes equipamentos na logística de última milha, incentivando a adequação da malha cicloviária para receber bicicletas que chegam a transportar 150 kg de produtos, com ergonomia adequada e alta produtividade, e reduzindo a emissão de gases poluentes.

 

COOPERATIVISMO NO BRASIL

No Brasil, as discussões e avanços do mercado de ciclo logística e do uso de bicicletas cargueiras elétricas seguem a passos lentos e distantes da realidade de pequenas e médias iniciativas, em especial as cooperativas. Após a criação, coletivos e cooperativas levam tempo para furar a bolha do mercado e se estabilizar financeiramente, e é comum que muitas iniciativas sucumbam antes mesmo de fazê-lo, evidenciando que a mobilização e a ação de trabalhadores também dependem do apoio da sociedade civil, da academia, do poder público, de um setor empresarial que invista e atenda necessidades específicas na fabricação de bicicletas, de empresas que contratem estas iniciativas, e de acesso a recursos financeiros.

Se na Europa vemos que as cooperativas se propõem a atuar fortalecendo o mercado de entregas e modernizando o setor, no Brasil a escassez de políticas públicas e recursos leva as iniciativas locais a reinventarem as relações intercooperativistas. Dessa forma, Señoritas se uniu ao Núcleo de Tecnologia do MTST e o Programa de Pós-Graduação da Unicamp, e o desdobramento desta ação se concretiza na criação de uma plataforma cooperativista de entregas.

Ao mesmo tempo, observamos o nascimento de uma parceria que pretende beneficiar trabalhadoras e trabalhadores, que terão acesso a formações de inclusão e letramento digital, cooperativismo, política e gestão de projetos, com olhar para a saúde financeira, física e mental de todos os envolvidos. Esta é uma visão holística do caminho que está sendo trilhado, considerando que trabalho e tecnologias digitais afetam e são afetados pela sociedade, compreendendo que o cuidado vem muito antes da programação.

 

*Aline Os é ciclo entregadora, fundadora do coletivo Señoritas Courier e esteve na Alemanha entre 3 e 12 de maio para participar do Velo-city Conference, que aborda questões sobre mobilidade ativa ao redor do mundo. Sua participação no evento foi possível devido a uma ação coletiva de 120 pessoas, que acreditam no potencial de um grupo de trabalhadoras e trabalhadores que estão (re)descobrindo o cooperativismo e outras formas de se organizar contra a precarização. Este texto aborda questões levantadas durante a conferência e ao longo dos últimos anos.

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PUBLICAÇÃO ORIGINAL
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