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Duas pesquisas, uma superconferência e o óbvio poder da bicicleta na sustentabilidade do Planeta

Foto: Rogério Viduedo

A bicicleta poderia ser utilizada para grande parte dos percursos em São Paulo, pesquisa mostra que entre 30 e 40% dos trajetos a distância não supera 5 quilômetros

Pesquisa do Cebrap divulgada em maio deste ano mostra que do total de deslocamento realizado em automóveis e ônibus na cidade de são Paulo, de segunda a sexta, das 6 ás 20 horas, 41% e 31%, respectivamente são pedaláveis. Significa que poderiam ser realizados de bicicleta por terem distância majoritariamente de até cinco quilômetros, chegando até oito. Caso houvesse a migração de viagens realizadas por automóveis e ônibus para a bicicleta, haveria uma redução de 18% nas emissões de gás carbônico. Não é pouca coisa em uma cidade na qual a poluição mata quatro mil pessoas por ano e deve causar 250 mil mortes precoces até 2030, de acordo com o Instituto Saúde e Sustentabilidade.

Financiado pelo Banco Itaú, – que investiu em 2017 R$ 64,9 milhões em 45 projetos que estimulam a cultura da bicicleta em seis capitais brasileiras, a publicação do relatório Impacto Social do Uso da Bicicleta em São Paulo é a peça que faltava para combater argumentos que visem retardar ações públicas para criar uma cultura de uso regular desse transporte ativo.

São números alarmantes para uma população de 12 milhões de pessoas na qual 25% é sedentária e apenas 15% acima de 35 anos de idade faz atividades físicas regulares. Com isso, doenças relacionadas à inatividade como diabetes e as cardiovasculares, consumiram em 2016 R$ 255 milhões em tratamento médico na rede pública. Os pesquisadores constataram que se essa mesma turma adotasse a locomoção rotineira por bicicletas, haveria economia de R$ 34 milhões anuais só em internações e procedimentos no Sistema Único de Saúde.

Adotar a bicicleta é também rentável para o bolso, principalmente para pobres. As classes C e D gastam em média 18% dos rendimentos mensais com transporte. Usando bicicleta, a despesa não passa de

4%. É dinheiro em torno de R$ 214,00, relevante para quem tem renda de até dois salários mínimos. A prefeitura também salvaria parte dos R$ 3 bilhões em subsídios destinados a custear empresas de ônibus. Saem do tesouro municipal todas as viagens gratuitas de idosos e estudantes, bem como aquelas três que podem ser feitas por cada usuário do bilhete único em um período de duas horas sem a cobrança de tarifa.

Pesquisas com o grau de isenção e credibilidade do Cebrap são cruciais para pressionar administradores públicos a se engajarem numa cruzada pelo uso da bicicleta. Elas reforçam as conclusões de outras produzidas por associações de ativistas como Ciclocidade, de São Paulo e Transporte Ativo, do Rio de janeiro ou por empresários organizados em torno da Aliança Bike. É mais ciência e racionalidade a ser propagada na defesa de um transporte mais sustentável, uma das metas recentes Organização das Nações Unidas.

Empregos verdes

Em parceria com a Organização Mundial da Saúde, a ONU publicou em agosto de 2018 o  estudo, Ciclismo e Emprego Verde, conduzido nas 56 maiores cidades da Europa, Leste Europeu, Cáucaso e Ásia central. É possível criar 435 mil novos postos de trabalho caso o uso da bicicleta obtenha 26% de participação no total de viagens feitas pelos habitantes desses centros urbanos.

A referência é Copenhague, única desse grupo com tal proporção. Com 775 mil pessoas e 10 mil quilômetros de ciclovias, a capital da Dinamarca gera 3,7 mil postos de trabalho diretos relacionados ao ciclismo. É considerada a primeira cidade ciclável e eleita a mais habitável do mundo.

O detalhamento do estudo da ONU permite saber a origem e a quantidade de emprego a ser criada em cada cidade. Na soma total, quase a metade do trabalho surge no varejo, tanto em venda quanto em manutenção. Outros 15% dividem-se entre a manufatura e desenho, o turismo e os serviços de entregas. Em parcelas menores, os 15% restantes dividem-se entre atacado, infraestrutura, administração, aluguel, eventos, estacionamento e outros serviços públicos ou privados. O percentual, no entanto, varia de acordo com a vocação ciclística de cada cidade.

Para fazer uma comparação rasa com São Paulo, o exemplo mais próximo da lista é Londres. Em ambas, a bicicleta participa com 3% do total de viagens. Lá, o ciclismo já emprega seis mil trabalhadores diretos. A população é de 7,83 milhões e o potencial de novos empregos, de 46,7 mil. Como São Paulo tem 12 milhões de habitantes, talvez possa criar o dobro de empregos. Tudo dependeria da atuação e disposição dos administradores públicos. Ou seja, sem a pressão da sociedade, a mudança vai demorar.

Velo-city, a superconferência do ciclismo

Negar que a bicicleta é o transporte mais sustentável que existe e um grande vetor de promoção de qualidade de vida urbana é como negar os malefícios do tabagismo ou do álcool. Em todos os continentes, existem gestores públicos e privados, cientistas e gente simples que têm atuado na criação de uma cultura da bicicleta que torne mais evidente o uso dela como ferramenta de libertação para seres humanos.

Em julho passado, ocorreu um evento no Rio de Janeiro com importância para o meio ambiente, saúde e finanças comparável às conferências do clima e aos fóruns econômicos mais badalados. A edição do Rio de Janeiro da série Velo-city, promovida pela European Cyclist Federation desde 1980, apresentou em quatro dias as iniciativas com resultados concretos a partir do uso intenso da bicicleta em cidades de cinco continentes. É lamentável, no entanto, que a presença de prefeitos e outros representantes públicos brasileiros tenha sido quase nula. Pode ser exagero, mas qualquer exemplo de uso da bicicleta trazido pelos palestrantes poderia ser aplicado com sucesso em qualquer cidade brasileira. Só é preciso vontade.

Em uma das sessões, o engenheiro japonês Kazuhiro Ito mostrou que bicicletas são uma das armas para amenizar a vulnerabilidade provocada pela aceleração da velhice. A Síndrome Japonesa, expressão crida pela revista The Economist para sintetizar o desafio enfrentado por uma nação onde 27% dos 126 milhões de habitantes tem idade acima de 65 anos, chegando a 40% em 2055. Mulheres já vivem até 86 anos em média e os homens, 80. Em 2060, para cada 1,5 trabalhador em atividade haverá um idoso, o que vai sobrecarregar as finanças e as horas livres das famílias.

O desafio está em redefinir o espaço urbano das cidades japonesas que seguiram durante meio século os modelos de espalhamento habitacional para os condomínios suburbanos distantes e a ultra dependência dos automóveis. Para quem é velho, dirigir torna-se mais difícil e morar longe dos centros é ficar sem acesso aos serviços básico. Para virar o jogo, o governo central passou a estimular a revitalização das cidades para torná-las mais compactas, seguras, inclusivas e acessíveis a pessoas de quaisquer idades, principalmente crianças e idosos.

Em 2009, um grupo de prefeitos e acadêmicos criou um comitê de crise com a meta de se criar cidades “caminháveis” e transformar cidadãos antes presos nos engarrafamentos intermináveis em pessoas saudáveis e felizes. As “Smart Wellness City” (SWC), Cidades inteligentes de Bem Estar, devem ser redesenhadas para estimular o convívio das pessoas. Para isso, precisam ser providas de infraestrutura de tráfego com passeios, passarelas, trilhas naturais, ciclovias e transporte público para reduzir a dependência do carro. Uma cidade mais compacta e amigável tem mais chances de engajar pessoas no relacionamento com os vizinhos e em atividades ao ar livre destinadas a reduzir incidência de doenças provocadas pelo sedentarismo.

Bicicleta: fonte da juventude

Com apoio do governo central, o SWC avançou rapidamente pelo país e o movimento já conta com mais 73 cidades. Utsonomiya, a 100 quilômetros de Tóquio, já foi considerada uma das mais congestionadas do Japão e hoje é reconhecida como a cidade japonesa do futuro. A partir de 2003, passou a atacar com vigor a carro-dependência dos habitantes e ao longo dos últimos 15 anos estabeleceu uma nova dinâmica social. Ao redesenhar o espaço urbano e o transporte público e criar um programa consistente de atividades ao ar livre, a cidade atraiu pedestres e ciclistas para conviver mais nas ruas. Em Utsonomiya, munícipes que caminham ou andam de bicicleta podem acumular pontos de acordo com a distância percorrida e trocar por produtos e serviços oferecidos pelo comércio local.

“Cidades caminháveis retardam os efeitos da fraqueza física e mental, promovem o espírito de comunidade e ainda aquecem a economia local”, explica Ito. Ele exibe um slide de uma pesquisa conduzida em Mitsuke, cidade de 45 mil habitantes no centro oeste do país. Antes de iniciar um programa diário de exercícios básicos, como alongamento e caminhada, a aparência física média de 2.132 inscritos com idade entre 30 e 80 anos era de 65,4 anos. No final de três meses, o grupo rejuvenesceu e passou a aparentar 60,9 anos.

Ao ingressar no grupo de cidades saudáveis, Mitsuke passou a monitorar pessoas com mais de 70 anos para comparar as despesas com médicos e remédios de pessoas ativas e inativas. Ao final de três anos, os 94 idosos que aderiram aos programas de exercícios consumiram 270 mil ienes por ano com a medicina enquanto que o grupo de 282 idosos inativos gastaram 370 mil ienes.

O desafio de Quelimani

Quelimane é a capital de Zambezia, quarta maior cidade de Moçambique. O problema apresentado pelo prefeito Manuel de Araújo relaciona-se com a explosão do uso da bicicleta para transportar pessoas na garupa. São mais de 2.000 “taxi-gingas”, trabalhadores informais que disputam com taxistas e motociclistas o transporte de passageiros. Na ex-colônia portuguesa da África Oriental de quase 400 mil habitantes, o desemprego, a inexistência de transporte público e uma topografia plana criaram uma situação ideal para o serviço.

Manuel Araújo, eleito prefeito de Quelimani em 2013 dá a dimensão do problema. Ele conta que a bicicleta responde hoje por 34% do total de viagens diárias e é usada regularmente por 23% da população. A explosão do taxi-ginga, no entanto, não foi acompanhada de políticas públicas e, sem qualquer infraestrutura viária e educação de trânsito as colisões com automóveis começaram a matar.

Araújo explica que apesar do baixo orçamento conseguiu tornar mais seguro e confortável o trabalho dos gingas. Instalou 12 semáforos para regular o tráfego, realizou campanhas educativas com motoristas e ciclistas e construiu uma rede de 25 chuveiros em pontos estratégicos de embarque e desembarque da cidade para uso dos profissionais. “Procuro investimento para construir uma ciclovia de 12 quilômetros, profissionalizar a atividade e diminuir as mortes”, revela Araújo em conversa após o término da  apresentação.

Tecnologia de inserção social

Os exemplos de Moçambique e Japão mostram que a ECF começa a dar mais importância aos temas que colocam a bicicleta como ferramenta de transformação social. A maioria das edições anteriores foi realizada na Europa e em geral apresentou temas voltados à inovação, tecnologia e infraestrutura ciclística. “A Velo-city Rio demonstra a importância em abordar temas ligados ao comportamento, acessibilidade e inclusão social. Um exemplo, é o fato da Europa estar começando a encarar problemas sociais e de acessibilidade por causa do grande fluxo de imigrantes”, explica  Márcio Deslandes, diretor do evento. “Nesse quesito, Brasil e Índia, por exemplo, possuem muito mais experiência”.

No caso brasileiro, o destaque da conferência foi a paulistana Aromeiazero, fundada em 2011, reconhecida entre os ciclistas pelo sucesso da plataforma Viver de Bike, que inclui um curso de 60 horas de empreendedorismo da bicicleta. O projeto já formou 80 alunos, sendo metade mulheres, que recebem ao final das aulas a bicicleta que usaram para aprender as técnicas de mecânica.

“O curso é voltado para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Buscamos a igualdade de gênero e atrair quem vive longe da região central da cidade”, diz o diretor do instituto, Murilo Casagrande. Ele afirma que após sete turmas concluídas ao longo de dois anos, o projeto está consistente, pronto para ser ampliado, mas que sofre com a falta de políticas públicas que incentivem o empreendedorismo a partir da bicicleta. E lamenta a resistência dos empresários do setor em apoiar projetos sociais semelhantes.  “É preciso um mercado mais maduro, que invista nas organizações que vão gerar a massa consumidora, o que gera mais lucro para eles”.

Texto: Rogério Viduedo, jornalista e cicloativista

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Matéria publicada sob autorização do Instituto Aro Meiazero.

Esta matéria também foi publicada no Portal Envolverde em 22/08/2018.

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