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Ciclismo feminino ganha cada vez mais espaço, mas mulheres ainda têm que lidar com assédio nas ruas
A tradicional Paris-Roubaix terá sua primeira edição dedicada às mulheres. A estreia feminina era para ter acontecido em 2020, mas foi adiada no ano passado e também em abril deste ano. A participação das mulheres ficou então para o aniversário de 125 anos da prova. Desde 1896 os homens enfrentam “Um Domingo no Inferno” nos mais de 200 km pedalando pela terra e muitos paralelepípedos na “Rainha das Clássicas”.
Uma mulher, uma bicicleta, uma hora. No último dia de setembro de 2021, o ciclismo feminino teve outra grande conquista, desta vez no velódromo. A britânica Joss Lowden se tornou a mulher mais rápida do mundo. Ela foi capaz de pedalar 48.405 m em exatos 60 minutos, superando os 48.007 metros de Vittoria Bussi em 2018.
A participação das mulheres tem ganhado cada vez mais visibilidade, com edições para elas em cada vez mais provas. Além, é claro, de números crescentes de mulheres inscritas em eventos e também circulando em bicicleta pelas ruas das cidades ao redor do mundo.
O Bicicleta News Especial desta semana vai além das duas grandes conquistas do ciclismo feminino mundial. Na pauta, uma das grandes barreiras que as mulheres precisam enfrentar para pedalarem mais, o assédio.
Assédio é barreira para o uso da bicicleta por mulheres
Uma barreira real para as mulheres pedalarem mais não tem nenhuma relação com alguma limitação física ou falta de interesse delas. Um vídeo recente ajudou a resumir uma das grandes dificuldades que mulheres ao redor do mundo precisam lidar ao usar a bicicleta. O assédio nas ruas é uma realidade e a ciclista Andressa Lustosa passou por isso na cidade de Palmas, interior do Paraná.
O crime sofrido por Andressa está sendo investigado inicialmente como importunação sexual e lesão corporal. A polícia conseguiu identificar um dos responsáveis, que foi preso e deverá responder na justiça pelas suas ações.
O vídeo que mostra a agressão sofrida disparou a revolta, em especial nas mulheres. Andressa resumiu da seguinte forma sua revolta durante participação no programa Encontro com Fátima Bernardes:
“É humilhante nós, mulheres, não podermos sair na rua para fazer uma atividade física. Você não pode sair na rua por medo. O que é isso? Em pleno século 21, é triste. Não é normal isso”, afirmou.
Imagens chocantes de assédio contra ciclista geram reflexão
Para entender um pouco melhor a revolta que as imagens do assédio sofrido por Andressa geram, entrevistamos Mayra Cotta, advogada especialista em gênero. Mayra é coautora do recém lançado “Mulher, Roupa, Trabalho”. Em 228 páginas, o livro investiga o que há por trás das escolhas que as mulheres fazem diante do espelho, todos os dias.
Mayra tomou conhecimento do assédio sofrido por Andressa Lustosa através de suas clientes. O vídeo compartilhado pela vítima tocou fundo nas mulheres que já sofreram alguma forma de assédio, seja no trabalho, ou através da violência doméstica.
Bicicleta News: Por que as imagens chocam tanto?
Mayra Cotta: A violência de gênero é diferente de um crime comum. Quando você é furtado, você sabe que foi vítima de um crime. É tudo muito evidente, o quem, o como, quando. Já a violência de gênero é muito mais cíclica. São espécies de violência que acontecem de forma continuada e progressiva. É muito difícil que o chefe assediador no trabalho ou o marido abusador ajam de maneira criminosa logo de cara. O assédio é um crime que acontece numa constante de aumento de tensão.
Raras vezes você vê violência de gênero de maneira tão forte e específica. A violência de gênero acontece em espaços cinzentos. Ali (no caso da Andressa) não há a menor dúvida. O que as mulheres que sofrem violência gênero passam, está ali escancarado. Imagens como essas não abrem possibilidade para se alegar vitimismo e paranoia, o vídeo demonstra que esses assédios acontecem mesmo. O que muda é que o assédio pode acontecer de uma forma mais diluída no tempo.
Pelas imagens dá pra observar sem sombra de dúvida que aquela mulher foi vítima de violência de gênero.
BN: Qual a sua perspectiva sobre a participação masculina e feminina nos esportes?
MC: Naturalizou-se que os homens são mais fortes que as mulheres, são melhores que as mulheres no esporte. Vários autores trazem uma perspectiva de diferenças entre homens e mulheres que são construídas socialmente e que as mulheres corporificam.
Meninas não podem sair correndo por aí, usam saia, sentadas de pernas fechadas. Assumindo as atitudes que se esperam delas, seus corpos se adequam ao que é socialmente esperado das mulheres. Elas corporificam o que se espera dela. Ocupar o mundo do esporte é algo a ser colonizado.
BN: Como a mulher ocupa o espaço das cidades?
MC: A cidade é muito voltada para o mundo do trabalho. Na transição do feudalismo para o capitalismo, passamos de uma Europa governada por aristocratas para um mundo dominado por capitalistas burgueses. Essa transição marca a transição que valoriza o homem branco burguês que empreende e abre seu negócio.
No período feudal, homens e mulheres aristocratas se vestiam de maneira bastante parecida. Ambos usavam perucas, vestidos.
Quando o homem passa a ocupar um lugar social, ele vai para roupas práticas. Cada vez mais as mulheres burguesas passam a ficar em casa e serem enfeitadas. O home passa a dominar o mundo da razão, da política, da tomada de decisão. As mulheres eram considerada imaturas,os homens não brancos eram selvagens, não racionais o suficiente.
Com a mudança do feudalismo para o capitalismo, as cidades e o mundo público, ficou muito hostil para quem não era homem branco.
BN: Como a roupa interfere no uso da bicicleta, em especial nas cidades?
MC: A bicicleta era impossível de ser usada com anáguas. Muitos movimentos de mulheres começam pela roupa. As sufragistas tinham a demanda de colocar praticidade nas roupas.
Salto alto, saia curta, roupa apertada, deixam a movimentação pelos espaços muito difícil. Quando comecei a usar bicicleta, descobri que ¾ do meu armário não servia para pedalar. Planejar o deslocamento em bicicleta, para uma mulher, envolve planejar aquilo que é adequado para se vestir.
BN: Para pedalar, as roupas para homens e mulheres são muito parecidas.
MC: Homens brancos não têm “corpo”. A racionalidade atribuída somente aos homens europeus acaba, simbolicamente, por deixá-los sem corpo. Quanto mais destaque se dá à razão, menos se constrói esse corpo. Os homens brancos têm histórica e socialmente o privilégio de não se preocuparem com o corpo.
Ao se fazer uma busca sobre homem sexy, aparecem homens de terno. Mulheres sexy estão de biquíni. O Sexy do homem está ligado a poder e competência. Já o sexy da mulher é um corpo socialmente construído.
O homem pode usar o que quiser, que não vai ser objetificado. Uma mulher pode estar de moletom e roupas largas que mesmo assim pode ser objetificada na rua.
BN: A bicicleta faz perceber a existência do próprio corpo. É quando todos estamos vulneráveis, em especial no trânsito.
MC: A bicicleta faz você lembrar que você tem um corpo. Uma subida difícil corporifica nossa existência.
A bicicleta traz vulnerabilidade. Pode vir um carro, você pode se desequilibrar. A bicicleta ajuda a mostrar para os homens o desconforto e abertura a vulnerabilidade, que as mulheres sentem todas as vezes que saem de casa.
BN: Como podemos avançar para que não se repitam casos de assédio como os que vimos essa semana?
MC: É preciso vocalizar as questões, dar visibilidade ao tema do, se solidarizar com as vítimas. A união da bicicleta com a cidade é muito interessante. A cidade é um local que exacerba as desigualdades.
A cidade é para ser um lugar para circular sem medo e obstáculos. É preciso contextualizar a conversa sobre bicicleta na luta por uma cidade para todas e todos.
Paris-Roubaix Femmes 2021
A mais tradicional das clássicas do ciclismo representa dificuldade e superação no seu máximo. A prova feminina não vai ser diferente, com a emoção extra de que a vencedora de 2021 entrará para a história do esporte pelo ineditismo do feito.
O teaser da prova ajuda a resumir o espírito: “Bem-vindas ao inferno”. É a glória da conquista do “Inferno do Norte” que as aguarda. Serão 116 km de prova, com 17 trechos em paralelepípedo. Uma prova voltada para especialistas no ciclocross.
A recordista da hora no velódromo
Pedalar no limite durante 60 minutos, apenas uma ciclista, sua bicicleta e a pista do velódromo. Esse era o desafio da britânica Jess Lowden.
Ela começou sua pedalada com um ritmo “conservador”, mas bastante rápido. Foi capaz de manter 48,236 km/h nos primeiros 30 minutos, sempre entre 10 a 17 segundos mais rápida do que a italiana Vittoria Bussi, a recordista desde 2018.
Lowden aumentou seu ritmo para um pouco mais de 48,300 km/h quando chegou nos últimos 20 minutos. E acelerou mais uma vez com 45 minutos de prova, para ficar 24 segundos à frente do recorde anterior.
Quando faltavam dez minutos para o fim da prova, ela subiu o ritmo mais uma vez e chegou aos 48,398 km/h de média. A essa altura, ela já estava 26 segundos acima da marca que queria superar.
O recorde da hora é também um desafio contra o vento, é preciso manter-se parada na posição mais aerodinâmica durante todo o tempo. O cansaço fez com que Lowden oscilasse os braços para frente e para trás em cima da bicicleta. Mesmo assim, ela continuou a forçar seu limite e acelerou até os 48,404 km/h. Quando ela finalmente superou os 48,007 metros percorridos por Bussi em 2018, Jess Lowden aumentou ainda mais a força nos pedais, chegando aos 48,407 km/h de média.
Exatos 60 minutos depois da largada, Jess alcançou os 48.606 metros percorridos. O resultado acabou ajustado para 48.405 metros. Uma marca impressionante, superando em mais de 300 metros a distância percorrida pela antiga recordista.
A prova pode ser revista, na íntegra, diretamente no Youtube da UCI.
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PUBLICAÇÃO ORIGINAL
Acesse os créditos do texto e da imagem/fotografia na publicação original:
- Veículo: Bicicleta News Aliança Bike
- Data de publicação original: 02/10/2021
- Endereço: https://aliancabike.org.br/ciclismo-feminino-ganha-cada-vez-mais-espaco-mas-mulheres-ainda-tem-que-lidar-com-assedio-nas-ruas/