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Pedalando no medo

A insegurança dos ciclistas que enfrentam a hostilidade dos motoristas do Recife.

 

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

“Já foi o tempo que a insegurança era em horário de trânsito, de pico. Atualmente é em qualquer horário, porque o desrespeito está muito grande”, essas são as palavras do fotógrafo Anderson Stevens, que utiliza a bicicleta diariamente há cinco anos. Em agosto deste ano, o ciclista sofreu um atropelamento que, por pouco, lhe custou a vida. Um homem dirigindo uma SUV, acessou a rua General Abreu e Lima, no bairro do Rosarinho, pela contramão e invadiu a ciclofaixa em que Anderson pedalava. Ele conseguiu desviar, puxando a bicicleta e pulando para o lado, mas o motorista seguiu sem prestar assistência.

“Eu tô ficando com medo, apesar de sair da minha casa na zona norte e, em três minutos, já entro na ciclofaixa, praticamente só deixo de ter ciclovia quando chego no trabalho, então eu tenho em torno de 90% de estrutura cicloviária, ciclofaixa na maior parte do percurso e ciclovia quando chego na avenida Mário Melo, em Santo Amaro. Mesmo assim, segurança não tenho em nenhum dos trechos”, reforça Anderson.

O medo de Anderson é provocado pela hostilidade do trânsito do Recife, são carros e motos invadindo ciclofaixas, estruturas inadequadas, ciclofaixas apagadas, asfalto irregular, tampas de bueiros desniveladas, além da falta de respeito de motoristas e motoqueiros. Se o fato de sair de casa já não garante o retorno, para quem é ciclista o risco é ainda maior.

O fotógrafo conseguiu escapar e sair ileso, mas esse não foi o destino de outros seis ciclistas da Região Metropolitana do Recife. Val, Sandro, Nelson, Gabi, Isis e um homem que não teve o nome divulgado foram mortos em sinistros de trânsito num intervalo de quatro semanas, entre os meses de setembro e outubro.

Barbara Barbosa, coordenadora da Ameciclo, afirma que são necessárias ações emergenciais. Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

“O trânsito está muito agressivo. A gente vem percebendo que na verdade está se normalizando a agressividade. Então a gente precisa de uma política pública emergencial e que realmente os governantes entendam o papel deles na sociedade”, analisa Barbara Barbosa, coordenadora da Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo).

Para exemplificar a realidade da capital, segundo a Ameciclo, enquanto esta reportagem estava sendo concluída, em apenas dois dias, quatro ciclistas foram atropelados no Recife, um teve o braço quebrado e o outro, a bicicleta. Olhando apenas para o Recife, de acordo com uma análise feita pela organização na plataforma de dados abertos da Prefeitura, ocorreu um aumento no número de acidentes de trânsito com vítimas nos últimos anos.

De 2022 para 2023, o aumento foi de 60,2%, passando de 1.906 para 3.055. Em 2024, a plataforma disponibilizou os dados até o mês de maio, totalizando 1.613 registros, mesmo assim, comparado ao mesmo período dos anos anteriores, nota-se um aumento de 82,9% em relação a 2023,com 882 registros para o mesmo período, aumento de 139% em relação a 2022, com 675 casos.

Especialistas associam diretamente esse crescimento à falta de diversas ações por parte do poder público, sobretudo a fiscalização eletrônica. O aumento dos números coincide com o período em que parte dos fiscalizadores eletrônicos estiveram desligados, entre 2023 e 2024. Além disso, de acordo com o site da própria CTTU, os equipamentos de fiscalização eletrônica, apesar de estarem operacionais 24 horas por dia, não fazem autuações durante as horas finais da noite e o início da madrugada, entre 22h e 6h.

Para mudar esta realidade, Barbara Barbosa relaciona as três principais demandas dos ciclistas e ativistas pelo transporte ativo – expressão usada para definir meios de transporte que utilizam a força do corpo humano, sem a ajuda de motores. “Redução das velocidades, implementação do plano diretor cicloviário e que a gente faça com que o plano de mobilidade de Recife, consequentemente das outras cidades, seja executado. Visão zero é que nenhuma morte é permitida, então a gente precisa estar nesse lugar de exigir que, para todo sinistro que acontece, a sociedade precisa exigir alguma ação direta emergencial”, reforça.

 

Plano Diretor Cicloviário, quase uma utopia

O que chama a atenção é que ao menos duas dessas mortes poderiam ser evitadas se o Plano Diretor Cicloviário (PDC) tivesse sido plenamente executado. Isso porque as ruas João Tude de Melo, no Parnamirim, São Miguel, em Afogados, deveriam ter sido contempladas com ciclovias previstas no tal PDC.

O plano foi lançado em 2014, ainda sob a gestão do governador Eduardo Campos, com a colaboração das prefeituras dos municípios da Região Metropolitana do Recife e da sociedade civil, com o objetivo de integrar os municípios com uma ampla rede cicloviária, incluindo as principais avenidas e pontos de conexão das cidades como prioridade.

No entanto, dez anos depois pouca coisa sair do papel, a principal das ações, a implementação do sistema cicloviário parece longe de acontecer. Segundo dados da plataforma Ideciclo, elaborada pela Ameciclo, estão projetados no PDC 630,2 quilômetros de estruturas cicloviárias na Região Metropolitana, incluindo ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas.

 

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  • Ciclovias: vias exclusivas para bicicletas, totalmente segregadas das vias de tráfego de veículos. Podem ser implantadas em nível intermediário entre a via de circulação e a calçada, ou separadas dos carros por elementos segregadores.
  • Ciclofaixas: espaços contínuos para bicicletas, geralmente localizados no bordo direito das vias e no mesmo sentindo do tráfego, segregadas das vias de tráfego de veículos por meio de pintura e/ou com o auxílio de outros recursos de sinalização.
  • Ciclorrotas: um caminho recomendado para a circulação de bicicletas, sinalizado ou não. Representa um trajeto e não apresenta a necessidade de segregador ou sinalização horizontal.
  • Vias Compartilhadas: de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, quando não houver ciclovia ou ciclofaixa, a via deve ser compartilhada (art. 58), ou seja, bicicletas e carros podem e devem ocupar o mesmo espaço viário. Além disso, os veículos maiores devem prezar pela segurança dos menores.

 

Desse número, apenas 216,6 quilômetros foram implantados considerando tanto as redes cicloviárias complementares, de responsabilidade municipal, e a rede cicloviária metropolitana, de responsabilidade estadual. Dos municípios da Região Metropolitana, Recife é o que tem maior cobertura cicloviária, com 185,4 quilômetros, sendo pouco menos de 75 deles dentro do plano cicloviário, mas o previsto para a cidade pelo PDC seriam quase 265 quilômetros.

Nos outros municípios, depois do Recife, a cidade com maior cobertura de estruturas cicloviárias é Jaboatão dos Guararapes com apenas 24,5 quilômetros. Cinco municípios – Igarassu, Araçoiaba, Ilha de Itamaracá, Itapissuma e Moreno – não possuem estruturas cicloviárias.

O CicloMapa, uma ferramenta de dados abertos que mostra as infraestruturas cicloviárias das cidades brasileiras, aponta que no Recife predominam as ciclofaixas e ciclorrotas, com apenas 28 quilômetros de ciclovias. Para a cidade, o plano prevê 71 quilômetros só de ciclovias.

O esquecido PDC estabelecia todo um sistema que faça com que esta rede cicloviária funcione, como bicicletários, conexões com integrações e estações de metrô, vestiários e a criação de um Escritório da Bicicleta, que reuniria o Governo do Estado, prefeituras e entidades da sociedade civil. Essa instância fiscalizaria e avaliaria a qualidade da execução do plano mas, assim como a maior parte do projeto não saiu do papel.

Yara Baiardi, arquiteta e urbanista, pesquisadora do Observatório das Metrópoles, avalia que esse é um dos problemas centrais para garantir a segurança cicloviária, mas não o único.

“A questão central é que a gente não pode colocar na “conta” do PDC essas mortes e esses sinistros. Porque de nada adianta se a gente não tiver redução de velocidade. Então mesmo se a gente tivesse todo o PDC implantado, se a gente não tiver esse tripé da redução da velocidade junto com a educação/fiscalização, a gente vai continuar tendo trânsito violento, não só para ciclistas, mas para motociclistas e para os pedestres, que são os mais vulneráveis”, reforça.

 

O que (não) diz o poder público? 

A Marco Zero fez diversas tentativas de contato com a Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU) e com o Governo do Estado. No caso das autoridades estaduais, houve a confirmação do recebimento do pedido de nota, mas não houve previsão de resposta. Já a prefeitura do Recife não se pronunciou nem respondeu os contatos via WhatsApp.

 

Um manifesto pela vida dos ciclistas

Mais de 150 organizações se juntaram para apoiar o manifesto Por um Recife sem mortes no trânsito, elaborado pela Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo). O documento foi protocolado na prefeitura da capital com uma série de reivindicações com foco na implementação de infraestrutura cicloviária de qualidade, políticas públicas que priorizem a mobilidade ativa e compromisso das gestões municipal e estadual com a preservação da vida, que precisam ser executadas de forma emergencial e eficaz.

Nas últimas semanas, os ativistas da Ameciclo iniciaram uma série de inspeções para avaliar a qualidade das ciclofaixas criadas no centro do Recife, além de participar de reuniões presenciais para pressionar autoridades municipais. Entre as articulações, está programada para o próximo dia 12, às 10h, a audiência pública “Mobilidade Urbana no Recife: Segurança Viária e a Precarização do Trabalho”, na Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE), para levar as discussões também a esfera estadual.

 

AUTORA: Jeniffer Oliveira – Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO.

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