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Dia do Ciclista: entenda como Fortaleza virou “a capital da bicicleta”

Mobilidade ativa é toda forma de deslocamento que não seja motorizado, ou seja, que utilize o esforço humano como fonte de energia. As bicicletas são o exemplo mais comum desse tipo de transporte. O incentivo à mobilidade ativa nas cidades diminui a poluição, os congestionamentos, e melhora a saúde da população.

Nesse contexto, a cidade de Fortaleza vem sendo apontada por especialistas como um destaque positivo no Brasil. A capital cearense possui, hoje, mais de 380 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, além de um sistema extensivo de bicicletas compartilhadas.

Para entender melhor as mudanças que transformaram Fortaleza em referência nacional de mobilidade ativa, o repórter Daniel Ito conversou com Juliana Coelho. Ela é superintendente da Autarquia Municipal de Trânsito da capital cearense.

 

Rádio Nacional: Desde quando Fortaleza está tomando essas medidas para incentivar o uso da bicicleta entre a população?

Juliana Coelho: Nesses últimos oito anos, nós tivemos essa possibilidade – me incluo também porque há bastante tempo já trabalho na área, há mais de 17 anos – e somente agora eu tive a oportunidade de ver sair do papel projetos dedicados justamente ao transporte ativo, que e é feito por bicicleta e caminhada aqui em Fortaleza. Nós fizemos uma pesquisa origem/destino em 2019, para conhecer o perfil das pessoas (onde é que elas moram, para onde elas estão se deslocando). Essa pesquisa é extremamente importante para quem quiser fazer qualquer planejamento em relação à mobilidade e segurança viária. A gente conhece qual o modo de transporte que as pessoas mais utilizam, a gente consegue compreender quais são aqueles espaços que as pessoas têm dificuldade de acessar, pode dimensionar melhor as linhas de ônibus… então foi feito todo um planejamento para cidade e incentivando justamente as pessoas deixaram de utilizar o veículo individual – ou pelo menos utilizarem menos, com menos intensidade, de uma forma mais consciente e hoje a gente vê a cidade de Fortaleza totalmente transformada. 

Hoje nós somos umas das cidades do Brasil que mais tem infraestrutura cicloviária. Agora no mês de julho, chegamos ao patamar de 386 quilômetros de ciclofaixas e ciclovias e nós temos também um grande sistema de bicicletas compartilhadas. Você pode acessar de maneira gratuita, apresentando o cartão utilizado aqui em Fortaleza, que se chama Bilhete Único. O cartão dá direito de pegar uma bicicleta dessa durante uma hora, e como nós temos 191 estações dessas bicicleta espalhadas na cidade, as pessoas conseguem se deslocar para vários locais. Elas conseguem ir trabalhar, para o lazer – durante o fim de semana, utilizar a bicicleta como prática esportiva. Hoje, esse sistema de bicicletas compartilhadas tem mais de 270 mil pessoas cadastradas; agora no mês de julho, ele completou sete anos e nós temos mais de quatro milhões de viagens realizadas neste sistema. Então a gente vê que hoje Fortaleza realmente é a capital da bicicleta. Uma capital do Nordeste que conseguiu se destacar no uso da bicicleta.

 

Rádio Nacional: Eu ouvi falar em uma iniciativa também que foi tomada em Fortaleza, que é em relação à verba arrecadada por meio dos parquímetros. É isso mesmo?

Juliana Coelho: Nós temos o estacionamento rotativo aqui, que se chama Zona Azul, mais localizado na região do centro da cidade, onde a gente precisa justamente ter uma grande rotatividade dessas vagas de estacionamento porque a gente dá oportunidade da pessoa resolver ali comprar alguma coisa, pagar uma conta e já desocupar aquela vaga e possibilitar que outra pessoa estacione nesse local. Todo dinheiro que é arrecadado desse estacionamento rotativo – existe uma lei municipal desde 2015 – e todo esse recurso é obrigatoriamente revertido para a expansão das estações de bicicletas compartilhadas e também para manutenção e expansão da infraestrutura de ciclofaixas e ciclovias da cidade. É um dinheiro que a gente já tem garantido todos os meses e que a gente consegue dar manutenção e expandir esse sistema de bicicleta.

 

Rádio Nacional: Essa rede de bicicletas compartilhadas é municipal ou é uma empresa terceirizada que presta o serviço?

Juliana Coelho: É uma empresa terceirizada. (A rede) iniciou com alguns patrocínios e hoje é através de empresa terceirizada, que faz a manutenção dessas estações.

 

Rádio Nacional: O que levou a prefeitura de Fortaleza a investir mesmo em mobilidade ativa, a colocar dinheiro público nisso?

Juliana Coelho: Ao longo destes oito anos de mudanças em relação à mobilidade urbana de Fortaleza, nós tivemos a ajuda de vários parceiros. Os técnicos da prefeitura passaram por uma série de treinamentos, workshops e seminários, onde a gente pode ter acesso a boas práticas que ocorriam no mundo em relação à mobilidade e ter a possibilidade de implantar aqui. As pessoas sempre diziam que Fortaleza não tinha vocação para ser a capital da bicicleta porque a gente tem um clima muito quente. Mas se a gente for analisar a pesquisa origem/destino que foi feita, por dia são 235 mil viagens feitas por bicicleta. Essas pessoas realmente utilizam a bicicleta como meio de transporte. A gente percebe – se eu comparar o ano de 2013 com 2021 – o aumento do uso da bicicleta muito relacionado ao aumento da infraestrutura segura para o ciclista. A gente costuma dizer que temos que colocar as ciclofaixas e ciclovias porque os ciclistas vão aparecer. Muita gente questiona, “por que colocar a ciclofaixa nesta rua porque não vai ter ciclista”, mas isso a gente comprova: quando estamos terminando de sinalizar a ciclofaixa, já tem um bocado de ciclista andando. A capital mudou. É só uma mudança de paradigma das pessoas. 

E eu não posso dizer que foi fácil, se não estaria mentindo. Foi um trabalho muito forte, principalmente com a imprensa local. Nós fizemos vários workshops com formadores de opinião da cidade, jornal impresso, as redes sociais, para que a gente também pudesse “contaminar” positivamente as pessoas, para que elas pudessem levar uma informação mais acertada, mais baseado em dados, para quem tá lá na ponta e utiliza o transporte. E também a gente fez um sério investimento em divulgação das ações: campanhas massivas de educação, abordando alguns fatores de risco relacionados ao uso de moto, ao uso inadequado da bicicleta. Foi um conjunto de ações. A parte de comunicação é extremamente importante, já que todo grande projeto a gente sempre fez questão de ouvir a população e saber dela se a gente está no caminho certo. Ter humildade de reconhecer alguns erros e corrigir projetos – fazer a população se sentir parte disso. 

Mobilidade urbana não é somente se preocupar com o ir e vir das pessoas. A cidade teve muitos projetos que motivam a população a voltar a ocupar os espaços da via. A gente tem um grande programa que se chama Praças Vivas, onde a gente pega espaços que antes eram destinados somente para estacionamento de veículos ou não tinha nenhuma definição de geometria e a gente, com intervenções de baixo custo, com mobiliário urbano e com pinturas, a gente transforma em pequenas praças e muda o uso deses espaço. É a modalidade intersetorial, não é somente no órgão de trânsito. Acho que o foco maior é você conseguir envolver várias secretarias de um município e mostrar que a mobilidade urbana interfere na cultura, na economia, na geração de emprego e renda.

Eu foco também na parte de segurança viária: Fortaleza também é uma referência hoje em relação à preservação da vida das pessoas. Nós fomos uma das primeiras cidades do mundo a atingir a meta da ONU na primeira década de ação, que foi reduzir em até 50% o número de mortes. As ações de mobilidade tem que estar lincadas sempre nesta parte da segurança viária também, que é para resguardar a vida das pessoas.

 

Rádio Nacional: Quais foram as mudanças que vocês sentiram a partir do momento que vocês começaram a transformar e investir na mobilidade ativa das pessoas? Que mudanças que isso trouxe para o ambiente da cidade, para o comportamento das pessoas?

Juliana Coelho: A gente teve muita resistência no começo, principalmente do uso da bicicleta por Fortaleza ter um clima quente. Só que a gente percebe hoje que as pessoas que vão para o trabalho de bicicleta vão de 6h a 8h, quando o sol não está tão quente, e voltam para casa entre 16h e 18h, quando que o sol já está se pondo e está mais tranquilo. Esse é o perfil do trabalhador que anda de bicicleta. Nós também temos o outro perfil, que é o pessoal que faz atividade física de bicicleta, ali depois das 20h. Então, se você viesse em Fortaleza em 2013 e vier agora, em 2021, você vai ver que umas das principais avenidas que nós temos, que é a Bezerra de Menezes, por lá passam 3.800 ciclistas por dia. É comparada até com volume de ciclistas na Avenida Paulista. Em termos de proporção, Fortaleza está com um número maior de ciclistas em uma via do que a capital mais populosa do Brasil. A gente fica muito feliz e contente.

Teve essa resistência no começo, mas as pessoas já mudaram bastante em relação a esse preconceito que elas tinham em andar de bicicleta na cidade, e isso é muito positivo. Hoje elas nos cobram a implantação de novas ciclofaixas, novas ciclovias. Outro investimento grande que foi feito foi no transporte público: hoje, nós temos mais de 130 quilômetors de faixas exclusivas de ônibus. E aí a gente pega uma via que foi projetada para os carros – todas as cidades brasileiras foram projetadas para carros – e acaba reduzindo uma faixa, dando-a para o veículo que transporta mais pessoas, que são os ônibus. E a gente também acaba tirando uma faixa dos carros e colocando para bicicleta. Praticamente a maioria das vias da cidade de Fortaleza estão nesse contexto: os veículos particulares detém o menor espaço na via, e em contrapartida, a gente está dando equilibrio para que a gente tenha uma multimodalidade: as pessoas tenham acesso a vários meios de transporte e que ele seja de forma justa. Não podemos beneficiar o veículo particular, porque geralmente é uma pessoa que anda sozinho nele. Ele transporta a menor quantidade de pessoas e que ocupa o maior espaço nas vias.

Então a gente tem introduzido este conceito massivamente na imprensa, nas redes sociais da prefeitura. Tem muitas ONGs do cicloativismo também que são muito fortes nessa parceria com a prefeitura e com as ações que a gente tem feito para mudar a consciência das pessoas em relação à maneira delas andarem, se deslocarem.

 

Rádio Nacional: E você tem algum tipo de avaliação, de estudos, sobre o impacto que essas mudanças estão causando em relação a emissão de relação a emissão de carbono, poluição sonora nas vias do centro da cidade?

Juliana Coelho: Sempre tivemos parceria com a Universidade Federal do Ceará – vários projetos são em conjunto com eles. Eles começaram a desenvolver agora um projeto na região do centro de Fortaleza, que em maio todo o centro passou a ser uma grande área de trânsito calmo. É mais de um quilômetro quadrado de área onde a velocidade-limite é 30km/h. Então a universidade começou a instalação de alguns equipamentos que aferem ali a poluição e a gente começou, no mês passado, a fazer este estudo e acredito que até o final do ano a gente já tem algum resultado. 

A parceria das universidades bastante positiva em relação a esses projetos de mobilidade, para você fazer o acompanhamento, o monitoramento, para saber se as ações estão sendo positivas. E se não tiverem contribuindo de alguma forma, a gente também tem a possibilidade de corrigir.

O resultado mais positivo que eu acho que tudo isso, do investimento em bicicleta, em transporte público é que a gente também está conseguindo reduzir a quantidade de pessoas lesionadas e mortas do trânsito. É o maior orgulho que eu tenho. É o sexto ano consecutivo que Fortaleza consegue reduzir o número de pessoas que perdem a vida no trânsito. São várias questões relacionadas a isso: são campanhas educativas, de incentivo a outros modos de transporte e também uma fiscalização muito forte, porque é na fiscalização que a gente tem a oportunidade de tirar de circulação aquelas pessoas que apresentem risco para as demais.

 

Rádio Nacional: Vocês têm intenção que esse modelo é sirva como referência para outras cidades do país? Você acha que é possível replicar esse modelo que vocês estão aplicando em Fortaleza em outras cidades do Brasil?

Juliana Coelho: Com certeza. A gente já tem ajudado outras cidades, principalmente aqui no Nordeste. A cidade de Recife agora está passando por este acompanhamento da iniciativa Bloomberg, pelo qual a gente passou. Eu acho que é muito da vontade política de fazer acontecer. Ver as experiências positivas do que foi realizado em Fortaleza nos últimos anos e replicar para outras cidades do Brasil é até mais fácil, porque Fortaleza é a quinta capital em termos populacionais do Brasil. Então temos mais cidades menores, menos complexas, com deslocamento mais tranquilo, que a gente pode adotar essas boas práticas que foram feitas em Fortaleza. É totalmente possível e tem que ter engajamento muita forte da população, de fazer sua parte, e cobrar a quem é da gestão – e realmente quem tem o poder de decidir. Mas, com apoio da população, acho extremamente possível e válido.

 

Edição: Nathália Mendes

 

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PUBLICAÇÃO ORIGINAL
Acesse os créditos do texto e da imagem/fotografia na publicação original:

  • Veículo: Agência Brasil
  • Data de publicação original: 19/08/2021
  • Endereço: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2021-08/dia-do-ciclista-entenda-como-fortaleza-virou-capital-da-bicicleta

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