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A vez das bikes

Por um ato de gentileza do amigo Antonio Miranda que me presenteou, estou terminando de ler “O Brasil que pedala – A cultura da bicicleta nas cidades pequenas”, produzido a várias mãos e coordenado por André Soares, da União de Ciclistas do Brasil e Daniel Guth, da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike). Foi publicado pela editora Jaguatirica em 2018, graças a parceria da Aliança Bike, União de Ciclistas do Brasil, Bicicletas para todos e Bike Anjo.

Trata-se de minucioso trabalho desenvolvido sobre o uso da bicicleta por boa parte da população local em 11 cidades brasileiras, algumas, creio eu, desconhecidas para a maioria dos brasileiros. Veja se você conhece ou já ouviu falar. Vou colocar em ordem alfabética: Afuá (Pará), Antonina (Paraná), Cáceres (Mato Grosso), Gurupi (Tocantins), Ilha Solteira (São Paulo), Mambaí, (Goiás), Pedro Leopoldo (Minas Gerais), Pomerode (Santa Catarina), São Fidelis (Rio de Janeiro), Tamandaré (Pernambuco) e Tarauacá (Acre).

Interessantíssimo de ver como essas sociedades cultivam o uso das bikes ao longo dos anos, protegem e incentivam a sua cultura e enfrentam os avanços de modais mais fortes (carros e motos). Claro, são municípios de menor porte, até 100.000 habitantes, onde a bicicleta se apresenta como alternativa ideal de mobilidade. De qualquer forma, um retrato que, imagino grande parte dos brasileiros não tinha ideia que existisse.

A grande estrela do livro, sem dúvida alguma, é Afuá, bem ao norte da Ilha de Marajó. Carros e motos são proibidos de circular na cidade que tem mais de 70% de suas ruas em cima de palafitas de madeira. O restante é composto de palafitas de alvenaria, construídas na década de 1980. Não possuindo taxis- automóveis, Afuá registra quase uma centena de bicitaxis para servir ao deslocamento da população. São quadriciclos, adaptados com partes e peças de bicicletas, por sinal, todas fabricadas lá mesmo na cidade.

É uma leitura recomendada para todos, mas principalmente para quem já tinha uma boa ideia do Brasil e quer descobrir mais uma faceta deste país surpreendente. Com o desenrolar da leitura, começa a fazer reflexões, saudáveis, mas preocupantes também.

Não lembro direito mas deve fazer vinte anos, fui convidado por líderes de movimentos ciclistas para fazer uma palestra em Florianópolis sobre os desafios do crescimento deste modal de transporte no Brasil. Pelo que soube, foi um dos primeiros encontros do gênero. Não eram muitos os participantes – algumas dezenas de ativistas, mas todos muitos dispostos a fazer crescer o uso das bikes nas nossas cidades.

De lá para cá o movimento a favor da bicicleta cresceu bastante e pode-se dizer que, hoje, são muitas as entidades que congregam ciclistas de todos os tipos e nas várias regiões do país. São entidades pequenas, de bairros, de cidades, regiões e mesmo de porte nacional, com membros residentes nos mais diversos estados.

Nos últimos 30 anos o Brasil passou por processo de transformação muito forte, o que afetou de forma bastante acentuada seus sistemas de transportes. O carro, que já tinha avançado bastante, continuou sua marcha; as motos ganharam um impulso incrível; o transporte coletivo, apesar de alguns avanços não conseguiu se afirmar como se esperava; o deslocamento a pé cresceu com os incentivos à saúde e um pouco por razões ambientais e, finalmente, a bicicleta também deu suas pedaladas mas sem chegar à posição de liderança tão sonhada pelos ativistas.

Torcedor que sou pelo seu sucesso, minha pergunta, então é: se tem tantos simpatizantes em todas as cidades, se os argumentos para aumentar seu uso nas cidades são tão fortes e evidentes, se o preço é acessível à grande parte da população, por que a bicicleta não é, no Brasil de hoje, nem uma a mostra do que o são alguns países europeus? Não sou um grande estudioso do tema, mas algumas reflexões me parecem elementares e me arrisco a propor para debate. Deixo claro que reconheço o avanço das bikes mas julgo que poderia ter sido bem maior.

Entendo que em primeiro lugar é devido à falta de uma política pública adequada nos vários níveis – federal, estadual e municipal. A falta de maior convicção (conhecimento) por parte das nossas lideranças sobre os benefícios do uso das bicicletas me parece básico para que o setor pudesse se desenvolver com mais celeridade. As dificuldades econômicas nacionais, as necessidades de melhorar o meio ambiente e a consequente poluição atmosférica nos grandes centros, as boas oportunidades para incentivar o uso do transporte de massa assim como do transporte ativo – a pé ou de bicicleta – foram oportunidades perdidas e que pesarão bastante no futuro urbano do nosso país.

De outro lado, fico com a sensação de que faltou, por parte dos defensores da bicicleta, uma melhor coordenação estratégica de ações para aproveitar a chance surgida. Faltou comando, “uma Anfávea” para as bikes, uma entidade de porte e atuação nacional, que atuasse com recursos e estratégias para aproveitar melhor as boas chances. Como a bicicleta, de todos os veículos, é o mais barato e consequentemente de maior facilidade de aquisição, me parece que a falta de uma efetiva comunicação de massa pesou grandemente nesta não-conquista.

Não conheço o funcionamento das lideranças da advocacia da bicicleta no Brasil mas, de onde estou, sinto faltar qualidade e quantidade de informações capazes de mobilizar a população a optar por este modal e, como resultado do interesse despertado, levar as lideranças do país a concluir que, enfim, chegou a hora delas.

O que se deve entender contudo é que, se este avanço vier a acontecer, não será apenas uma vitória da bicicleta ou de seus ativistas mas de toda a sociedade que ganhará enormemente com esta eventual conquista. O Brasil ganha na saúde, no social, no meio ambiente, na economia, enfim, os benefícios se multiplicam em muitas áreas.

Adoraria ler, daqui há alguns anos, uma segunda edição do livro “O Brasil que pedala”, mas aí, já com centenas de cidades que conseguiram colocar o uso das bicicletas em posição muito mais privilegiada do que atualmente. Isto não representaria apenas benefícios para a sociedade mas sobretudo o amadurecimento de políticas públicas que colocariam o país entre os melhores do mundo. A conclusão, então, é que a vontade política das lideranças precisa ser incentivada pela sociedade mas esta por sua vez deve ser despertada pelos defensores da bicicleta.

 

J. Pedro Corrêa é consultor em programas de segurança no trânsito (jpedro@jpccommunication.com.br)

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Publicado sob autorização do autor.

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